quarta-feira, 22 de agosto de 2018
EU ERA ESTRANGEIRO E ME ACOLHESTES – MT 25,35.
O
Evangelho de Mateus nos apresenta o julgamento final a partir de cinco
situações humanas vividas pelos pobres. É um julgamento de atitudes antes de
pensamentos e orações. São as práticas ou omissões que decidem. Afinal, não é o
julgador quem separa ovelhas de cabritos, mas as atitudes das pessoas durante a
vida que nos fizeram optar por caminhos “ovelhais” ou “cabritais”.
O
julgamento envolve elementos de uma grande epopeia: a certeza da chegada do
Filho, a visão do séquito de anjos e do trono de glória, a convocação de todas
as nações para uma reunião derradeira da humanidade, e a separação de uns e
outros pelo critério da misericórdia e do amor do pastor. Não é julgamento frio
nem legal stricto sensu. É reconhecimento de benção e maldição pelas decisões
concretas do viver. É coerência de vida sendo apresentada aos olhos de todos
que já sabiam que estes eram os valores ou desvalores de cada um dos
companheiros e companheiras da nossa viagem vital na terra dos viventes.
As
situações paradigmáticas são estas: fome, sede, ser forasteiro ou migrante,
nudez ou fragilidade radical, doença ou preconceito contra o corpo e aprisionamento.
Todas as seis situações ferem a alma e o corpo. Todas as seis podem ser vistas
nas ruas de qualquer cidade ou serem invisibilizadas por óculos de desprezo e
cumplicidade. São situações que qualquer ser humano pode viver em algum momento
da vida. Fome, sede, nudez, doença nos acompanham diariamente do acordar ao
adormecer. Ser migrante ou preso parecem reservadas aos estranhos ou outros
casos raros, mas pode, entretanto, ser vivida por qualquer pessoa sem trabalho,
ou situada em um ambiente hostil em sua própria cidade.
Basta
pensar-se sozinho nas madrugadas frias de uma grande megalópole e do outro lado
da rua vislumbrar um estranho para que o medo irrompa voraz e o coração bata
descontrolado. Sentimos perseguição até de fantasmas interiores.
A
terceira separação que será feita pelo pastor que é o Filho de Deus em nome do
Pai tem como rosto concreto os migrantes, refugiados e estrangeiros em qualquer
terra ou lugar. É um paradoxo a nos recordar que somos todos peregrinos e
ninguém é dono de lotes na terra nem tem direito de cercar e cercear o caminhar
da vida e a pulsão da esperança de quem busca pão em outras latitudes. O texto
original em grego diz assim na parte positiva que chama os benditos (Mt 25,35):
“fui estrangeiro, e vocês me trataram como alguém convidado”. E na parte
negativa ao afastar os da esquerda e amaldiçoa-los (Mt 25, 43): “fui
estrangeiro, e vocês não me receberam”.
Acolher
em casa como um convidado de honra é aquilo que julga e decide para onde iremos
na eternidade. Acolher ao diferente e ao estrangeiro e não o parente,
consanguíneo ou parceiro de sonhos, idiomas ou lutas. Acolher como convidado
àquele que ninguém considera como digno de acolhida. Acolher o que fala idioma
incompreensível, acolher o que come comida distinta, o que reza por outras
cartilhas ou até que não reza por cartilha nenhuma, acolher o que talvez até
nos incomode e questione mesmo silente ou distante.
No
antigo Israel havia normas e prescrições concretas para acolher um estrangeiro.
Especialmente na festa da páscoa se um estrangeiro quisesse tomar parte da
festa e da partilha do cordeiro devia ser previamente circuncidado (Ex 12,48;
Nm 9,14). A acolhida ao estrangeiro era uma obrigação de memória e compromisso
de justiça. Lembrados de que haviam sido estrangeiros no Egito, os judeus
deviam acolher bem aos estrangeiros. Não podiam ser oprimidos (Lv 19,33-34),
podiam ceifar as bordas dos terrenos dos judeus para comer o pão diário (Lv
23,22), se o estrangeiro viver na penúria o judeu devia sustentar esse irmão de
sofrimentos (Lv 25,35), e jamais prejudicar um estrangeiro ou necessitado (Dt
24,18). Todos, entretanto, estavam submetidos às regras da lei e da pureza
judaicas.
O
ministério de Jesus é completado na redação do evangelista Mateus por esse
texto lapidar e duro. A descrição do juízo final possui tintas fortes e pouco
se assemelham ao detalhes de Dante Alighieri em sua Divina Comédia. É um ato de
discernimento sobre a conduta da vida pessoal e coletiva que nos julga. De
certa forma podemos dizer que nós mesmos sabemos o que nos julga e com que
régua seremos julgados. Não há surpresas nem mal-entendidos. O Evangelho é sempre
uma escolha entre isto e aquilo. Entre este ou aquele. Ou, ou. Trigo ou joio.
Peixe bom ou peixe ruim. Servo bom ou desleal e relapso. O Evangelho não é
imparcial ou amorfo e sem nervatura antropológica. Ele escolhe posições em
sociedades assimétricas e injustiças. Não há como ficar em cima do muro. Pior
ainda é ficar omisso e alienado da vida dos forasteiros que batem em nossas
portas e cidades.
O
que de fato surpreende é a medida do julgamento ou, diríamos, desse Supremo
Tribunal. Não é dinheiro ou sequer gestos religiosos ou discursos falaciosos de
bem e bondade sem prática e compromisso fraterno. Falar não conta. Seremos
julgados pelo amor e pelos nomes que possamos proclamar diante do juiz supremo.
Se passamos o viver na indiferença ou cumplicidade com o poder e a riqueza, não
teremos nomes a proclamar.
Estaríamos
afônicos diante do Trono. Quem nos salva são os outros. A salvação cristã é uma
conexão como povo e como fraternidade. São os famintos, sedentos, forasteiros,
desnudos, enfermos e prisioneiros os que trazem nossa alforria divina e
infinita. O que é feito a estes últimos é feito ao próprio Deus.
Não
há distinção nem separação. Deus e o pobre se fazem um só destino e desafio
atitudinal. O que fizermos a estes é reconhecido como feito a Deus. São os
pobres que nos abrem as portas da eternidade.
Certamente
sabemos bem que a amplitude da fome, nudez e prisão não estão restritas aos
famélicos da terra que garimpam nas lixeiras urbanas o resto do que ricos e
classe média desprezaram. Estes e estas são só o rosto primeiro de uma
exigência radical. A escolha pelo pequenino é um símbolo na escala de valores.
Afinal o nu e o faminto é o próprio ser humano. Cuidar dos pequenos deve se
transformar em modus vivendi, em modo de vida. Dizia o mestre João Batista
Libanio: “Cada cuidado pequeno, a quem quer que seja, é ao Senhor que fazemos”.
Para
chegar ao julgamento final é preciso que ouçamos as advertências de Deus e de
seus profetas em nossa história concreta. As parábolas da vigilância presentes
nos evangelhos sugerem cuidados preventivos para que não falte óleo em nossa
lâmpada e que estejamos despertos quando o Dia do Senhor nos tocar na fronte.
Estar preparados é viver preparados seguindo atitudes distintas de quem ama e
perdoa.
Deus
envia seus profetas para que saibamos que não estamos órfãos. Em primeiro lugar
o próprio Filho que se fez um de nós. De forasteiro na eternidade a irmão de
carne e sangue da humanidade e no tempo. Depois Paulo Apostolo que se faz
missionário entre gregos como um entre eles. Milhares de mártires e santos
encarnados em povos e culturas distintas, Pregadores como Domingos de Gusmão,
Francisco de Assis e Antônio de Lisboa e Pádua, companheiros entre os pobres. E
marcando o nosso coração brasileiro recordamos a São Vicente de Paulo que há
exatos quatrocentos anos nos convoca à caridade afetiva e efetiva. O padre
Gregory Gay, Superior Geral da Congregação da Missão (ordem dos padres, fundada
por São Vicente de Paulo), definiu que entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de
2017 será o Ano da Acolhida ao Estrangeiro.
Quem
são estes estrangeiros, atualmente? No Brasil, praticamente são todos os aqui
viventes. Somos todos filhos, netos e bisnetos de imigrantes que aqui chegaram
de uma centena de países distintos. Ainda que hoje existam somente um milhão de
estrangeiros cadastrados pelo Ministério da Justiça sabemos que o planeta
recebeu perto de dois milhões de brasileiros que hoje vivem fora da pátria como
emigrantes. Exportamos mais que recebemos. Sabemos também que há desafios
concretos em nossas cidades que estão a receber haitianos, venezuelanos,
angolanos, moçambicanos, nigerianos, e, particularmente dezenas de sírios
refugiados que buscam paz depois do massacre mantido pelos senhores da guerra.
Acolher bem aos refugiados é a primeira marca do amor em nosso tempo de muros e
segregações. É a pedra-de-toque proposta pelo amado Papa Francisco. Há mais de
65 milhões de refugiados segundo a ACNUR.
E
sabemos que mais de um bilhão de seres humanos se encontram em situação de
migração dentro e fora de seus países. Um em cada sete pessoas no planeta não
vive em sua terra e busca ser acolhido e amado por outros povos e culturas.
Muito a fazer. Muito a partilhar. Muito a pedir para que Deus nos ilumine e
fortaleça na missão. Que nossa força seja a esperança feita amor. Seguindo o
mote vicentino como música de nossa ação: “Amemos a Deus, meus irmãos, amemos a
Deus, mas que isto seja a custa dos nossos braços, que isto seja com o suor dos
nossos rostos”.
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