O amor-compaixão quando aflorado nos torna
sensíveis ao outro
, a ponto de sentir-nos incomodados diante da
injustiça, da exclusão
e da indiferença social. (Reprodução/ Pixabay)
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O
compartilhar amor é a energia mais poderosa no processo de humanização.
Edward Guimarães*
Entre os maiores e mais graves
desafios da vida contemporânea destaca-se a superação desta desumanizante
cultura da indiferença social. A vida urbana e as múltiplas tecnologias de
transporte e comunicação favorecem aproximação, por um lado, mas
contraditoriamente também nos distanciaram uns dos outros. Morar na mesma
cidade, bairro, rua, prédio, casa, infelizmente, não garante uma boa
convivência respeitosa, dialogal e afetuosa entre as pessoas. Muitos
experimentam a solidão ou a indiferença, mesmo cercado de pessoas por todos os
lados. O mesmo pode ser dito das tecnologias de transporte e comunicação. As
novas possibilidades suscitadas pela criação do avião, trem, carro,
motocicleta, bem como do correio, telefone, internet, rede social virtual,
smartphone... não destruíram as lógicas e dinâmicas que criam distâncias,
desencontros, solidões, exclusões, preconceitos, violências e indiferenças
entre nós.
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Entretanto, creio que ninguém negue,
pelo menos em princípio, que o que mais nos realiza e nos deixa feliz como
pessoa está diretamente relacionado com a concretização de uma boa convivência
familiar, com os amigos e amigas, com os colegas de trabalho e com todos que
interagimos nas mais diversas experiências sociais no cotidiano da vida. Todos
desejamos ser bem acolhidos com atenção e um sorriso afetuoso, reconhecidos em
nossa dignidade humana e cidadã, ser bem tratados, ouvidos, amparados quando em
necessidade, abraçados, amados. Todas essas posturas são aprovadas tacitamente
por cada um de nós, reconhecidas e avaliadas como positivas.
Acontece que, infelizmente, não são
elas que predominam em nossas atitudes, posturas e relações. Ao contrário,
analistas das sociedades contemporâneas reconhecem entre recorrentes práticas
impiedosas e violentas, posturas individualistas e excludentes, bem como
crescente tendência à globalização da indiferença social. Por que será que isso
acontece? Será que nos falta reflexão e avaliação crítica e autocrítica? Penso
que sim, mas não isso não explica tudo. A condição humana é de potencialidade
aprendiz. Não nascemos prontos. Carecemos passar por um longo processo coletivo
de aprendizado para nos humanizar. Toda pessoa, ao nascer, precisa ser educada
em e para a convivência social. Somos constitutiva e simultaneamente indivíduos
e sociedade, sendo que a arte do bem-viver-conviver é conquista diária e sempre
em construção.
Para desenvolvermos nossas
potencialidades humanas, precisamos ser, antes de tudo, amados e bem cuidados,
seja no seio familiar, seja nos diversos níveis e espaços de convivência na
vida em sociedade. Há uma multiplicidade de experiências na história da
humanidade quanto ao cuidar do contínuo processo de humanização, sobremaneira
das novas gerações. Sistematizar e transmitir, para crianças e jovens, o legado
de sabedoria acumulada na caminhada do grupo e sem fechar-se à novidade que
cada geração traz, sintetiza, basicamente, o segredo da evolução de cada
sociedade.
O compartilhar amor é a energia mais
poderosa no processo de humanização. Amar é uma decisão que precisamos, o
quanto antes, aprender a tomar. Nascida do respeito e da admiração, a dinamismo
criativo do amar se transforma em fonte de sentimentos gratificantes, que
provoca e promove o cultivo do gosto de estar junto e partilhar o que somos e o
que temos e estimula a arte de aprender a conviver com outro. Mas o amor não
elimina a nossa condição de ambivalência. O dom da liberdade, pressuposto para
o amor se concretizar, implica a tomada de consciência do livre arbítrio. Este
cria a condição de ambiguidade. Isso significa que teremos sempre a
possibilidade de amar ou odiar, ajudar ou atrapalhar, compartilhar ou reter,
pensar no outro e ser generosos ou fechar-nos e ser egoístas, etc. Esta condição
pede vigilância e discernimento nas escolhas que fazemos.
As sociedades contemporâneas, de
modo singular as ocidentais, deixaram-se dominar pela centralidade do mercado
com suas regras frias e indiferentes à dignidade da vida. O acesso ao consumo dos
produtos e mercadorias oferecidos pelo mercado passou a ser sinônimo de
felicidade e realização. Sem dar-se conta, talvez, o ser humano,
paulatinamente, passou a ser coisificado e foi sendo reduzido a mero
consumidor. E como o poder de consumir, segundo as regras do mercado, exige a
condição de ter dinheiro, este passou a ser o objeto mais cobiçado, a pérola
mais preciosa a ser buscada por todos. E como sem dinheiro você não é
considerado, você se torna um “Zé ninguém”, o segredo da vida passou a ser regido
pelo verbo acumular e não mais o aprender a amar e a bem se relacionar com as
pessoas. Não precisamos dizer mais do que isso para compreendermos as origens
da desigualdade e da cultura da indiferença social.
Nem tudo está perdido. Isso porque o
ser humano traz em si o dom do amor-compaixão. Ele possui uma estrutura interna
que o estimula, pela reflexão, a se colocar no lugar do outro e, ao fazê-lo,
sentir a sua alegria ou a sua dor. É claro que o amor-compaixão precisa ser
testemunhado, estimulado e aprendido. E nada melhor do que criarmos dinâmicas e
gramáticas de solidariedade-cidadã para que esta potencialidade humana se
desenvolva e aflore. Uma pedagogia de gestos autênticos de solidariedade, ainda
que pequenos, é capaz de despertar verdadeiras revoluções sociais. Suscitar
movimentos populares de luta em defesa da dignidade da vida. Fazer com que
grupos diversos passem a exigir políticas públicas garantidoras da igual
dignidade cidadã dos excluídos. Encorajar pessoas diversas a saírem da zona de
conforto e irmanarem-se nas diversas lutas em defesa da coletividade. O
amor-compaixão quando aflorado nos torna sensíveis ao outro, a ponto de
sentir-nos incomodados diante da injustiça, da exclusão e da indiferença
social. A solidariedade-cidadã mobiliza forças pessoais e sociais criativas com
poder de transformação das estruturas frias e indiferentes da sociedade.
Quando compreendemos o poder do
amor-compaixão e a força da solidariedade-cidadã para suscitar entusiasmos,
mobilizações e transformações culturais e sociais deciframos o segredo do
fascínio exercido sobre nós por Jesus de Nazaré, Francisco de Assis, Tereza de
Ávila, Mahatma Gandhi, Tereza de Calcutá, Helder Câmara, Nelson Mandela, Dalai
Lama, Herbert de Souza, Zilda Arns, Marielle Franco, papa Francisco e de tantos
outros homens e mulheres que impulsionaram ou concretizaram verdadeiras
revoluções sociais em seu tempo e contexto. Mas, mais do que isso, encontramos
o antídoto contra a hegemônica cultura da indiferença social.
*Prof. Edward Neves
Monteiro de Barros Guimarães é mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia – FAJE, orientado por João Batista Libanio. Atualmente é
doutorando em Ciências da Religião na PUC Minas, com uma pesquisa sobre o
legado teológico de João Batista Libanio. É professor do Departamento de
Ciências da Religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do
Observatório da Evangelização. É assessor das Comunidades Eclesiais de Base –
CEBs. Membro do Conselho Arquidiocesano de Pastoral e do Conselho Ampliado de
Formação do Seminário Arquidiocesano.
Fonte:domtotal.com
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