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A comunhão de vida com Cristo nos faz ter um caso de amor
com a vida. (Reprodução/Pixabay) |
Reflexão sobre a
liturgia do 19º Domingo do Tempo Comum - Jo 6,41-51
“Quem come deste pão viverá
eternamente” (Jo. 6,51)
Continuamos
no cap. 6 do Evangelho de João. Aumenta a tensão entre os judeus e Jesus. À
medida que Jesus vai aprofundando no seu ensinamento, vai aparecendo a enorme
diferença existente entre o que eles aprenderam da tradição e o que Jesus lhes
quer transmitir. E vão aparecendo as doentias murmurações.
“E começaram a murmurar contra
Jesus”.
Murmuravam
porque Jesus havia dito: “eu sou o pão vivo descido do céu”. É o mesmo verbo para falar das
murmurações dos israelitas no deserto contra Moisés, por não lhes dar alimento,
como eles tinham no Egito. Jesus lhes recorda que o povo esteve contra Moisés
nos momentos difíceis e agora também não confiam nas palavras do próprio Jesus.
Sabemos
que a murmuração se expressa de inúmeras maneiras, sutis ou não, formando uma
montanha de ressentimentos, queixas, críticas ácidas... Murmurar é
contraproducente e nocivo. Alguém que murmura é uma pessoa difícil de conviver
e poucas pessoas sabem como responder às queixas feitas por outras que expelem
sua fuligem interior. O trágico é que, uma vez expressa, a murmuração leva ao
que mais se queria evitar: um afastamento maior. Essa murmuração íntima é
sombria e pesada: condenação dos outros, condenação de si mesmo,
justificativas... entrando numa espiral de amargura e fechamento.
À
medida que a pessoa se deixa arrastar ao interior do vasto labirinto das suas
murmurações, fica mais e mais perdida, até que, no fim, acaba achando-se a
pessoa mais incompreendida, rejeitada, negligenciada e desprezada do mundo.
Em
um coração carregado de murmurações e queixas, o Espírito não tem liberdade de
atuar; elas são a fonte poluidora de onde brotam as doentias divisões internas,
que atrofiam as forças criativas, petrificam o coração, resistem ao novo e
levam ao distanciamento de tudo e de todos. Com isso, a pessoa se blinda,
tornando-se rígida, fechada em suas posições, crenças, valores... e não se
deixa impactar pelo encontro com o diferente.
Como
quebrar os ferrolhos das murmurações e estender as mãos para acolher o surpreendentemente
novo? Como passar do coração de pedra para a morada da fonte de água viva?
Nesse
contexto “carregado”, Jesus vai abrindo um caminho de existência compartilhada,
que se expressa na comunicação do pão e que culmina na comunicação de vida. Ele
não se deixa afetar pelas murmurações que levam à morte.
Jesus,
o “Pão da Vida”, tocou as “vidas feridas” com delicadeza e ternura e as transformou. Seus gestos
terapêuticos foram o prolongamento da ação criativa de Deus; com palavras e
ações Ele inaugurou no meio de nós o Reino de Vida do Pai. Não só optou pela vida e se comprometeu com a vida, mas fez
de sua Vida uma entrega radical a favor da vida.
Em
Jesus acontece algo totalmente novo; Ele traz uma nova maneira de viver e de
comunicar vida que não cabe nos nossos esquemas. Quem entra em comunhão de vida
com Ele, conhece uma vida diferente, de qualidade nova, expansiva...
A
comunhão com Jesus é fonte de vida e vida em crescente amplitude. Quando nos
dispomos a caminhar com Ele, sob a ação do seu Espírito, realiza-se em nós um
processo de abertura e de superação, de crescimento e de reconstrução de nós
mesmos...; tomamos consciência de uma dimensão profunda de nosso interior, que
nos permite experimentar uma outra vida, que supera tudo o que vivemos até então.
A
“vida eterna”, então, não é um prolongamento ao infinito de nossa vida
biológica. É a dimensão inesgotável e decisiva de nossa existência. Ela
torna-se “eterna” desde já.
Para
o evangelista João, a “vida” é uma totalidade, ou seja, a vida presente, a vida
atual, é uma vida que tem tal plenitude que, com toda razão, podemos chamá-la
de “vida eterna”, uma vida com tal força e tão sem limites, que nem a morte
mesma terá poder sobre ela.
Precisamos
adquirir uma consciência mais profunda da vida do espírito, perceber as
pulsações desta vida eterna que está em nós, do mesmo modo que, prestando
atenção, percebemos as batidas de nosso coração.
A
vida, desde o mais íntimo da pessoa humana, deseja ser despertada e vivenciada
em plenitude.
Vida
plena prometida por Jesus: “Quem crê, tem a vida eterna”
Jesus
faz-se alimento que gerar vida nova no mundo; alimentar-nos d’Ele, desperta
nossa vida interior, fazendo-nos redescobrir nossa verdadeira riqueza; ao mesmo
tempo, fazendo-se “pão partilhado”, Jesus nos ensina a gerar vida, ou seja, Ele nos
move a fazer com que nossa própria vida seja “alimento substancioso”, para que
outros também tenham vida.
A
comunhão de vida com Cristo nos faz ter um “caso de amor com a vida”.
Nem
sempre sabemos viver: conformamo-nos com uma vida estreita, estéril, fechada ao
novo, carregada de “murmurações”. Quando nos saciamos com o Pão, que
proporciona vigor inesgotável, nossa vida se destrava e torna-se potencial de
inovação criadora, expressão permanente de liberdade, consciência, amor, arte,
alegria, compaixão.... É vida em movimento, gesto de ir além de nós mesmos;
vida fecunda, potencial humano. Vida com fome e sede de significado, que busca
o sentido... Vida que é encontro, interação, comunhão, solidariedade. Vida que
é seduzida pelo amor, pela ternura. Vida que desperta o olhar para o vasto
mundo. Vida que é voz, é canto, é dança, é festa, é convocação...
Ao
afirmar: “Eu sou o pão
vivo que desceu do céu”, Jesus nos revela que a vida é sempre uma novidade que rompe
velhos barris; ela é um fenômeno que emerge de forma misteriosa; ela se impõe,
simplesmente.
Tal
realidade desperta fascinação, provoca admiração e veneração... porque a vida é
sempre sagrada. Diante dela ficamos extasiados, boquiabertos, escancarados os
olhos e afiados os ouvidos. Ela nos atrai por sua força interna. A vida é
sempre emergência do novo e do surpreendente.
Portador
de uma vida inesgotável, somos muito mais que o simples resultado de nossos
esforços e lutas. Vivemos para mergulhar em algo diferente, novo e melhor.
Nossa
vida não é um problema a resolver, mas uma experiência a acolher, uma aventura
a amar e um mistério a celebrar. Afinal, somos discípulos(as) permanentes na
escola do Mestre da vida!
Nesse
sentido, a experiência do Seguimento de Jesus é uma verdadeira “escola de vida”, cuja aprendizagem nos leva ao
âmago do nosso ser, para enraizar nossa vida no coração cheio de nutrientes,
dele haurir a força da vida divina e deixar-nos plenificar pela graça
transbordante de Deus.
Nada
mais contrário ao espírito do Evangelho que a vida instalada e uma existência
estabilizada de uma vez para sempre, tendo pontos de referência fixos,
definitivos, tranquilizadores...
Texto bíblico: Jo 6,41-51
Na
oração: Para viver a partir do ser mais profundo, é preciso dedicar, cada dia,
algum tempo de atenção ao próprio coração e aprender a regozijar-se da
maravilhosa vida de Deus em cada um.
Basta
um repouso e o estar presente para fazer acalmar a agitação interior e
aproximar-se da fonte da vida.
-
Temos nas mãos e no coração a opção de viver “em chave de murmurações”(queixas, ressentimentos e desencantos) ou “em chave de benção”, descobrindo na vida a presença
d’Aquele que nos faz estremecer de alegria, desafiando-nos a ser “pão para os
outros”.
-
Sua vida cotidiana: “pão amargo de murmurações” ou “pão substancioso de
bênçãos”?
*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos
Exercícios Espirituais.
Fonte: domtotal.com
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