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O que importa para a igreja é oferecer espaço
humano
à criança que já existe e que ocupa o seu centro.
(Reprodução/ Pixabay)
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“Jesus
tomou uma criança, colocou-a no meio deles e, abraçando-a...” (Mc 9,36)
No
evangelho de Marcos, o “caminho” representa o itinerário de formação do
discipulado. Jesus não quer um grupo de fanático que lhe entoem vivas a seu
nome, mas um grupo de pessoas responsáveis que sejam capazes de assumir Seu
projeto, em favor da vida, ou seja, o Reino de Deus. Por esta razão, seus
esforços se concentram no ensinamento de seus seguidores. Mas, a instrução
parte dos desacertos e das incompreensões que eles vão revelando ao longo do
trajeto para Jerusalém.
No
evangelho deste domingo, Jesus utiliza uma estratégia pedagógica muito
criativa: retoma a discussão dos discípulos que, no caminho, estavam
concentrados não em Seu ensinamento, mas na partilha dos cargos burocráticos de
um hipotético governo. Jesus reconduz a discussão mediante um exemplo tomado da
vida diária: coloca uma criança no meio deles. Tal gesto
revela como o presente e o futuro da comunidade dos seus seguidores(as) está em
colocar no centro não as próprias ambições, mas as pessoas mais simples e
excluídas. Só assim se reverte o sistema social de valores; e só assim, a
comunidade torna-se uma alternativa inspirada frente ao mundo, que só sabe
colocar no centro as pessoas ricas e poderosas. A novidade de Jesus consiste em
tornar grande quem é pequeno, despojado de poder e prestígio.
Os
discípulos queriam construir a Nova Comunidade em bases de poder, a partir do
maior e do primeiro. Mas Jesus não precisa de maiores nem primeiros, busca os
últimos e servidores; quer pessoas que saibam se colocar no final, para ajudar
os outros a partir desse espaço, superando a lógica do mando. Ao falar assim,
não combateu um simples vício de egoísmo, mas inverteu as estruturas mesmas da
velha sociedade, edificada a partir dos poderosos.
Ninguém
briga para disputar o último lugar. Todos discutimos e buscamos o primeiro
lugar. Essa foi também a conversação dos discípulos pelo caminho.
Ninguém
estava disposto a ser o último; todos queriam ser os primeiros. E isso porque
Jesus acabara de anunciar, de novo, a entrega de sua vida em favor dos outros,
em serviço de amor.
Por isso,
quando, em casa, lhes pergunta - “O que discutíeis pelo caminho?” -,
todos ficaram mudos. Agora ninguém quer dar a cara; todos são inocentes. Com
sua pergunta, Jesus quer que tragam à luz seus íntimos e perversos sentimentos,
mas guardam silêncio porque sabem que não estão de acordo com o que Ele vinha
lhes ensinando. Entre eles, continuam na dinâmica da busca do domínio e do
poder.
Os
discípulos haviam discutido sobre quem é (ou deve ser) o maior. Como todo grupo
humano, também no grupo de Jesus surgiram invejas, desejos de liderança,
disputas sobre privilégios. Mas Jesus não é um ditador, não impõe seu domínio
pela força; Ele sabe que seu grupo de seguidores tenderá a dividir-se em
grupinhos de influência ou prestígio; Ele tem consciência que onde predomina o
poder, a vaidade, a força... alí não há possibilidade de uma verdadeira
comunidade.
Só
superando a lógica do desejo de poder é que se pode edificar o reino da nova
humanidade, um mundo onde os mais fracos e vulneráveis possam viver em amor e
crescer em vida.
Jesus já
tinha apresentado seu projeto em chave de ruptura social e religiosa,
investindo toda sua vida em favor dos outros. Ele desencadeou um “movimento
humanizador”, onde não há lugar para o domínio, a imposição, mas espaços de
gratuidade e de ajuda mútua, abertos aos mais necessitados, a partir de uma
perspectiva de entrega da vida. Seu projeto revelou-se luminoso, mas,
humanamente falando, parecia inviável, pois todo grupo humano busca
organizar-se numa estrutura de poder, e os discípulos de Jesus pretendiam fazer
isso, de maneira que alguns pudessem ocupar os lugares-chave da comunidade.
Por isso,
para inverter esse modelo e criar uma comunidade diferente, Jesus toma
uma criança e realiza um gesto provocativo: coloca-a no centro
e a abraça.
Os
discípulos conspiram, buscando poder e prestígio; no entanto, Jesus descobre e
desmascara tal conspiração, oferecendo amor (abraçando) a uma criança. Dessa
forma, a autoridade (colocá-la no meio) se torna ternura: a criança é importante
porque está à mercê dos demais e necessita carinho.
Jesus põe
a criança no centro de todos. Os discípulos buscam o centro, mas o verdadeiro
centro da Vida de Deus está já ocupado pela criança a quem Jesus a coloca de
pé, em sinal de autoridade, no meio do círculo onde Ele mesmo havia se situado,
convertendo-a em autoridade máxima.
Aqui
aparece um Jesus escandaloso, messias de ternura que não só abraça as crianças,
senão que propõe esse gesto como sinal de identidade de seu discipulado e
reino.
A mesma criança
aparece assim como autoridade, sinal do messias (“quem a recebe, a mim me
recebe”).
No espaço
central da Igreja, abraçada a Jesus, encontramos uma criança; a nova comunidade
passa a ser lugar para o abraço. Ambos, Jesus e a criança, formam a verdade
messiânica. Com esta imagem desaparecem os modelos de domínio e prestígio (ser
maior, ser primeiro, ter mais poder). A criança é a maior e a primeira, não é
preciso buscar mais. A partir daí se pode falar de igreja: quem acolhe a
criança, oferecendo-lhe espaço para o abraço no centro da casa, esse, sim faz
parte da comunidade cristã.
Frente
aos discípulos patriarcalistas que buscavam o domínio e o poder (ser grandes,
conquistar com risco os primeiros lugares) Jesus elevou aqui o modelo de uma
Igreja que é família, lar materno a serviço dos pequenos, lugar da acolhida e
do crescimento das crianças.
O Jesus
de Marcos superou um modelo de família patriarcalista, entendida como
hierarquia de poder; ao iniciar um movimento de vida nas casas, Jesus insiste
na necessidade de que toda a comunidade de seus seguidores atue de um modo
materno-paterno, acolhendo os mais necessitados, e de um modo especial as
crianças, com um gesto de autoridade (a criança é o centro da comunidade) e de
ternura (à criança oferece-se o calor da vida e o abraço).
Frente
uma sociedade do “descarte”, onde as crianças são as primeiras vítimas da
violência, o evangelho de hoje torna-se ocasião privilegiada para repensar a
atitude dos cristãos frente à infância desamparada. Também a Igreja, quando
está só focada no poder, no ritualismo, na doutrina, no legalismo, no
moralismo, no dogmatismo..., deixa de ser mãe terna e carinhosa para com os
mais frágeis, para deixar-se contaminar pela “mosca azul” do poder e prestígio.
O que
importa para a igreja é oferecer espaço humano à criança que já existe e que
ocupa o seu centro. Não é questão de dogmas mais ou menos racionalizados, nem
tampouco das grandes estruturas. A igreja deve fazer-se lugar de vida para as
crianças!
A
comunidade cristã não é (não deveria ser) um grupo dominado por sábios anciãos
(uma gerontocracia), não é sociedade de sacerdotes poderosos ou influentes, um
sindicado de burocratas do sagrado, funciona-rios que escalam passo a passo os
degraus de sua grande pirâmide de influências, poderes, competências (e também
incompetências). De acordo com o evangelho deste domingo, a Igreja é, antes de
tudo, lar para as crianças, espaço onde encontram acolhida e ajuda para seu
crescimento, humano e espiritual.
Texto
bíblico:
Mc 9,30-37
Na
oração: Há gestos
cotidianos que nos ajudam a descobrir em profundidade quem somos realmente. Um
abraço, um beijo, uma mão estendida, um olhar sereno..., são gestos que quebram
toda pretensão de poder e desmascaram o impulso de querer colocar-se acima dos
outros. São gestos que nos recordam que somos seres amados.
Sem
dúvida esta é a linguagem de Deus: Ele se desvela mais nos gestos, que dão
conteúdo a tantas palavras já desgastadas.
-
Prolongar, no seu cotidiano, o modo terno e carinhoso de ser e de agir de
Jesus, sobretudo com os mais frágeis.
*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios
Espirituais.
Fonte: domtotal.com
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