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Poder dar vida, capacitar para que cada pessoa pudesse viver sua vida e sua verdadeira identidadefoi, para Jesus,numa fonte profunda de fecundidade e de felicidade. (Jon Tyson by Unsplash) |
“Jesus
saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da
Galiléia...(Mc 7,31)
Uma
imagem constante no evangelho de Marcos: Jesus, portador da Vida, é um itinerante; rompe
os espaços geográficos-culturais-religiosos e transita com muita liberdade pelo
território pagão. Ali também se encontravam os excluídos, aspirando viver
relações mais humanizadoras.
Nesse
deslocamento, algumas pessoas trazem um surdo-mudo a Jesus e pedem que lhe
imponha a mão. O surdo-mudo poderia ir ao encontro d’Ele, mas não teria como
expressar seu pedido.
Portanto,
parece lógico, que alguém tivesse que atuar para conduzir o surdo-mudo até
Jesus, para que fosse “tocado”; aqui aparece a força do contato.
Sabemos
pouco da riqueza de nosso contato. O contato nos cura. É um caminho de
comunicação maravilhoso. Na enfermidade, muitas pessoas não buscam mais que o
contato. Um verdadeiro contato nos envia sempre para dentro. Não é somente o
contato da pele, mas o que nos põe em marcha para nosso interior.
O contato
nos faz despertar. Existe a idade da palavra, a do ouvido, a do olhar..., mas
neste momento Jesus se detém na idade do contato. O caminho do contato é o da
mais profunda comunhão.
A mão é
fonte de contato, é canal de passagem da energia curativa.
O Mestre
separa o surdo-mudo da multidão e lhe confere uma atenção especial, em um
espaço protegido, onde pode estar a sós com o doente. É apenas nesse encontro
entre os dois que a confiança necessária pode crescer para que aquele, cuja
boca e ouvidos estão fechados, se abram.
O
processo da cura do surdo-mudo é descrito aqui em cinco passos, onde
Jesus abre a possibilidade para o encontro deste homem com os outros e para o
encontro com o Pai: coloca os dedos nos ouvidos do surdo, toca a língua
do mudo, eleva os olhos ao céu, suspira e ordena: “Efatá” –
“abre-te”.
Palavra
dirigida ao coração do surdo-mudo. É como se dissesse: “abre-te à tua
identidade! Destrava teu interior!” Depois de tantos passos através do
não-verbal, vem a palavra. E o surdo-mudo desata sua língua e começa a falar.
Contrariamente
aos outros milagres, Jesus realiza uma série de gestos que demonstravam
proximidade e envolvimento: tocou o corpo do homem, olhou para o céu,
exprimindo sua comunhão com o Pai, e suspirou como sinal de participação
profunda no acontecimento. A cura deixa de ser um ritual puramente exterior,
mas brota de um encontro, de um gesto que demonstra comunhão entre o doente e
Jesus.
Jesus,
com seus sentidos abertos e acolhedores, destrava os sentidos do pobre homem
excluído e o capacita a integrar-se na convivência social; com os sentidos
abertos, agora ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma vez
libertado da atrofia dos sentidos, o homem se emancipou, recuperou sua
autonomia e agora pode manifestar-se sem bloqueios; nada mais o limita.
Com todos
os órgão e sentidos do seu corpo mobilizados, ele insere-se na comunidade que
ouve a Deus e proclama que Ele é o único Senhor. Desaparecem as causas que lhe
impediam optar com liberdade; a possibilidade de uma nova vida se abriu para
ele.
Nessa
nobre missão de ajudar os outros a “dar à luz” o melhor deles mesmos, Jesus foi
um sábio “parteiro”: n’Ele podemos contemplar em quê consiste o saber servir de
ajuda para que a vida possa emergir como dom.
Jesus se
dedica ao surdo-mudo de forma carinhosa, como uma mãe. Ele toca a língua do
mudo com sua saliva. Este é um gesto maternal. O surdo-mudo só consegue abrir
seus ouvidos e sua língua, num ambiente marcado pela confiança e pelo amor
maternal.
É sugestiva
a imagem de ser “parteiro da vida”, ou seja, saber favorecer o
nascimento de cada um, em sua verdade mais profunda, em todas as suas
possibilidades. É colaborar com o Deus Pai/Mãe nessa bela missão, ajudando cada
pessoa a ser o que pode e está chamada a ser.
“Ativar e
expandir vida” foi a paixão que mobilizou todo o ministério de Jesus: seu
desejo de que todos tivessem vida e vida em plenitude, sua capacidade de fazer
emergir a vida atrofiada, centrou-se de um modo especial nos excluídos,
marginalizados, enfermos, pessoas “oficialmente pecadoras”...; pois, assim Deus
o havia revelado, assim sentia Ele seu coração entrar em sintonia com o coração
do Pai, que põe mais amor onde há mais necessidade.
Poder
“dar vida”, capacitar para que cada pessoa pudesse viver sua vida e sua
verdadeira identidade foi, para Jesus, uma fonte profunda de fecundidade e de
felicidade.
Assim
como o surdo-mudo, também nós podemos viver dentro de bolhas, que nos atrofiam
e impedem que cheguem até nós o rumor da vida dos demais, com seus problemas e
suas alegrias; ou permanecer fechados dentro de nossas pequenas fronteiras, com
dificuldades para expressar o que sentimos e vivemos.
Enquanto
permanecemos fechados, reduzidos a falsas identidades, geramos confusão e
sofrimento. Acreditamos naquilo que não somos e esquecemos quem realmente
somos. Tal fechamento evoca a imagem de uma jaula, feita à medida dos limites
que nossa própria mente estabelece. Condenar-nos-emos a um sofrimento estéril e
insolúvel, por um único motivo: confundimo-nos com algo que não somos.
“Efatá”:
“abre-te”. O ser humano, mesmo sendo pura abertura e amplitude sem
limites, tende a fechar-se. Talvez, porque isso lhe traz uma sensação de
segurança, ao crer que mantém o controle sobre o pequeno espaço ao qual se
reduziu.
Para
começar, ele se fecha em seu próprio corpo, como se as fronteiras físicas do
mesmo delimitassem também sua identidade; fecha-se em suas ideias atrofiadas,
em sua religião burguesa, em seu legalismo e moralismo doentios, em suas
intolerâncias e preconceitos...
Nesse
contexto, a palavra de Jesus aparece como um convite firme a sair de qualquer
identificação redutora: “abre-te”, “não te mantenhas fechado na
crença de uma identidade isolada, que não pode ouvir nem contar a Beleza
que realmente és”.
“Abre-te”, “não
te feches em nada, não te reduzas a nenhum objeto, não te deixes aprisionar em
nenhuma jaula, reconheça a abertura sem limites do “oceano” que constitui tua
verdadeira natureza”. “Abre-te”…, “a qué? À tua verdadeira
identidade!”
O
surdo-mudo necessitava abrir os ouvidos e a língua, mas todos nós temos
necessidade de abrir alguma dimensão de nossa pessoa, ou talvez alguma
capacidade adormecida ou bloqueada.
É
provável que, normalmente, a abertura seja progressiva: à medida que
consentimos abrir algo em nós, ser-nos-á mostrado o próximo passo a ser dado.
Como nas “sete moradas” de S. Teresa D’Ávila, diferentes portas se sucedem, uma
depois de outra; assim se revela ser nosso mundo interior. Cada porta aberta
nos coloca diante de outra nova “porta”, que clama para ser também aberta.
E, no
percurso interior, vamos tendo acesso a espaços cada vez mais originais e
inspiradores, até chegar finalmente a nos reconhecer na Divina Morada, nossa
verdadeira identidade, nosso “eu profundo”. Daí nasce a sabedoria, unindo
corpo-mente-afetividade, coração.
Esse
caminho conduz à descoberta de que somos Um com Aquele que nos habita e nos
conecta com o universo, forjando nossa identidade de filhos(as), irmão e irmã
de todos. Quando conectamos com esta realidade, toda nossa vida se equilibra e
adquire sentido; esbarramos na Fonte.
Texto
bíblico: Mc 7,31-37
Na
oração: No evangelho deste domingo, o autor transmite a palavra chave no
próprio idioma de Jesus, o aramaico “Efatá”, “abre-te”.
É preciso
deixar ressoar no próprio interior esta expressão; enquanto pronuncia,
pergunte-se: “A quê ou em quê preciso abrir-me?”
- Quê
portas de sua vida é preciso abrir? Capacidades adormecidas (amor, ternura,
alegria, generosidade, solidariedade, liberdade...), defesas protetoras que se
converteram em armadura oxidada (medo, indiferença, imagem idealizada,
intolerância...), “manias” nas quais se instala, costumes e rotinas que o(a)
mantém fechado(a) em uma bolha de tolerado conforto...
Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios
Espirituais.
Fonte: domtotal.com
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