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O diferente não pode ser uma ameaça. (Reprodução/ Pixabay)
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Reflexão sobre a liturgia do 26º Domingo do Tempo Comum - Mc 9,38-43.45.47-48
Por Adroaldo
Palaoro*
“Mas nós lhe
proibimos, porque ele não é dos nossos” (Mc
9,38)
Cresce hoje a
consciência sobre a diferença do ser humano como atração, e não como rejeição.
A humanidade pós-moderna exige a diversidade na convivência
sócio-cultural e religiosa. Não podemos permanecer trancados em redutos que
rejeitam as diferenças existenciais. A humanidade deixou de ser distante para
tornar-se mais próxima, mediante as diferenças, os diálogos e as convergências.
O mundo globalizado não pode ser apenas econômico. É chamado também a respeitar
e a cultivar as diferenças entre as pessoas, as raças, as religiões, as
sociedades e as nações.
No entanto, corremos o
risco de viver em mundos-bolha; podemos construir nossa vida encapsulada em
espaços feitos de hábito e segurança, convivendo com pessoas semelhantes a nós
e dentro de situações estáveis. É difícil romper e sair do terreno conhecido,
deixar o convencional. Tudo parece conspirar para que nos mantenhamos dentro
dos limites politicamente corretos. Todos podemos terminar estabelecendo
fronteiras vitais e sociais impermeáveis ao diferente. Se isso acontece,
acabamos tendo perspectivas pequenas, visões atrofiadas e horizontes limitados,
ignorando um mundo amplo, complexo e cheio de surpresas. Muitas vezes “vemos” o
diferente, mas só como notícia, como o olhar do espectador que sabe das “coisas
que acontecem”, mas não sente e nem se compadece por elas.
Marcos, no evangelho
deste domingo, recolhe vários ditos de Jesus a partir de uma reação tipicamente
preconceituosa do grupo dos discípulos: a de impedir um desconhecido utilizar o
nome de Jesus, por uma única razão: “não era dos nossos”.
Frente à reação
excludente dos discípulos, Jesus propõe a tolerância que nasce de uma atitude
aberta e inclusiva. Ao longo da história humana, a etiqueta “dos nossos” gerou
desprezo, ódio, preconceito, enfrentamento e morte, numa sequência desumana de
sofrimento inútil.
A ironia é que se trata
justamente disso, de uma mera etiqueta, completamente superficial e enganosa,
que nasce do próprio medo e insegurança, que leva a nos “proteger” do
diferente, buscando refúgio naquilo que nos é conhecido.
O diferente não pode ser
uma ameaça; no entanto, na vida nos defendemos e, às vezes, questionamos e
atacamos posturas, visões políticas, teológicas, espiritualidades, modos de
viver uma religião..., culminando em rupturas e, em alguns casos, em conflitos
ou ódios.
Aos poucos, nos
recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que
os diferentes são nossos inimigos. Da indiferença passamos aos discursos
fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação, ao fanatismo...
Pode, a identidade
cristã co-existir criativamente, e de quê maneira, em meio a uma cultura plural
e de identidades múltiplas como a nossa?
O que está em jogo
reveste tal gravidade que exige modificar radicalmente nosso modo de ver e de
agir: cortar a mão (modificar as ações), cortar o pé (mudar o rumo) ou
arrancar o olho (transformar a visão). Trata-se de um processo que nos
impulsiona a crescer em humanidade, esvaziando nosso “ego” de suas
inseguranças, medos e preconceitos.
Tal transformação
radical pede olhos capazes de olhar o mundo em sua complexidade e em suas
feridas; mãos prontas para acariciar, construir, e abertas para o encontro e o
abraço; pede pés para encurtar distâncias e criar proximidade acolhedora; pede
boca disposta a falar com palavras de verdade e de benção; pede coração
disposto a implicar-se, vibrar... às vezes, romper-se. Membros que se gastam no
serviço. Enfim, sempre amar, com o fascinante que é viver como cristãos de
carne e osso.
Sabemos que do ponto de
vista psicológico, a questão da intolerância, do preconceito e
do fanatismo se acha vinculada à segurança. A segurança
constitui uma necessidade básica do ser humano.
Enquanto a pessoa não
faz a experiência de uma segurança firme e interna que a sustente, ela buscará
fora de si – projetando-a em um líder, em um grupo ou em uma instituição -, ou
se fixará em suas ideias, crenças e convicções. Quando isso acontece, a pessoa
insegura não poderá tolerar que seu líder, seu grupo, sua instituição, sua
religião, sejam questionados; assim como tampouco poderá permitir que suas
ideias, crenças ou convicções sejam criticadas. Isso tirará o tapete de sua
própria estabilidade.
Para uma pessoa fechada
em seu fanatismo, preconceito e intolerância, “os outros” são percebidos como
ameaça; porque, quem pensa diferente ou adota um comportamento diferente, lhe
faz ver que o seu pensamento ou comportamento não são o valor “absoluto”, senão
mais um ao lado de tantos outros.
E isto é o que uma
personalidade insegura se vê incapaz de tolerar, pela angústia que lhe gera a
falta de seguranças “absolutas”. Por isso mesmo, sentir-se-á incapaz de tolerar
a divergência, e tenderá a desqualificar, julgar, condenar (ou empenhar-se em
“converter”) a quem não pense como ela. Porque percebe toda diferença como
ameaça.
A “saída” do fanatismo
requer experimentar uma fonte de segurança que se encontra mais além da mente
(de suas ideias ou crenças). Uma experiência que confere à pessoa uma sensação
interna de consistência e de autonomia. Quem é capaz de ter acesso ao seu “eu”
mais profundo, relativiza também o caráter absoluto que tinha atribuído às
ideias e crenças e, ao mesmo tempo, permite aos outros serem diferentes, sem
que a diferença seja vista como perigo.
Não é comum prestar
atenção ao que acontece no território interior. São grandes os
riscos de se viver em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a
solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade
social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O próprio
território se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte
inspirador de tudo aquilo que se faz.
E, retomando a queixa de
João no Evangelho de hoje, podemos perguntar: “quem são os nossos”?
Grupos, tribos,
nacionalismos, partidos políticos, religiões e ideologias de todo tipo tendem a
definir com claridade os limites que marcam o próprio “território”, impedindo
que “os outros” tenham acesso a ele.
A vivência do seguimento
de Jesus Cristo implica romper a bolha que asfixia a vida e derrubar os muros
que cercam o coração, atrofiando a própria existência. Nada mais contrário ao
espírito cristão que a vida instalada e uma existência estabilizada de uma vez
para sempre, tendo pontos de referência fixos, convicções absolutas, modos
fechados de viver... que impedem a entrada do ar para arejar a própria vida.
Muitas vezes, o zelo
religioso, moral ou político degenera em formas de intolerância e violência.
“Pode acontecer
também que os cristãos façam parte de redes de violência verbal através da
internet e dos diversos fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos
sites católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e
a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia.
Gera-se, assim, um dualismo perigoso, porque, nestas redes, dizem-se coisas que
não seriam toleráveis na vida pública e procura-se compensar as próprias
insatisfações descarregando furiosamente os desejos de vingança. É
impressionante como, às vezes, pretendendo defender outros mandamentos, se
ignora completamente o oitavo: «não levantar falsos testemunhos» e destrói-se
sem piedade a imagem alheia. Nisto se manifesta como a língua descontrolada «é
um mundo de iniquidade; e, inflamada pelo inferno, incendeia o curso da nossa
existência» (Tg 3, 6).”
(papa Francisco, Gaudete
et Exsultate, 115)
Texto bíblico: Mc 9,38-43.45.47-48
Na oração: O que é
o específico de uma vida cristã? Buscar, no seguimento, fazer e viver o que fez
e viveu Jesus. Para isso, adotar as atitudes, o olhar e a capacidade de
contemplação da realidade que o mesmo Jesus adotou. Ele abraçou diferenças e novos
horizontes. O Seu ministério ultrapassou as fronteiras. Ele rompeu
com os muros do preconceito social, racial, religioso...
- Deixar a luz do
Evangelho des-velar (tirar o véu) possíveis atitudes intolerantes e
preconceituosas diante dos “outros diferentes”.
*Adroaldo Palaoro é
jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
Fonte: domtotal.com
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