“...que devo fazer para ganhar a
vida eterna”? (Mc 10,17)
Ao começar a narrar a cena do jovem
rico, Marcos nos faz cair na conta que o encontro acontece quando “Jesus
saiu caminhando”. O caminho é o lugar dos encontros
surpreendentes, do diálogo com o diferente, da amplitude de vida... A
itinerância é o modo próprio de Jesus viver e, portanto, também é a marca do
discipulado.
Ao mover-se de um lugar a outro
Jesus se põe em condições de acolher o outro, de deixar-se afetar por suas
buscas e perguntas existenciais. Abandona os lugares seguros e corretos para
dirigir-se, não só às margens da história, mas também ali onde estavam outros
homens e mulheres com inquietações diferentes, com outras visões e
experiências..., mas carentes de sentido.
Toda saída implica deixar para trás
lugares conhecidos, experiências que funcionaram, certezas adquiridas, crenças,
valores, referências fixas...; enfim, tomar distância daquilo que parece nos
dar mais segurança. Em outras palavras, toda saída, todo êxodo, implica uma
profunda experiência de despojamento, um exercício para tornar leve a
equipagem, uma confrontação com o novo e o diferente que, tantas vezes, assusta
e provoca medo.
Nossos estilos de vida cristã e
nossas estruturas precisam de uma transformação, uma itinerância, que só
acontece quando corremos o risco de sair de nossas estufas mofadas e entrar nos
novos espaços abertos, quando deixamos os lugares seguros e percorremos as
ruas, ali onde acontece a vida das pessoas, procurando acolher todo o humano no
coração.
Precisamos transitar novas sendas,
exercer uma sadia auto-crítica com respeito a ideias, linguagens, estilos de
vida, modos de compreender a fé, etc., que temos recebido e nas quais nos
encontramos seguros e tranquilos. Precisamos passar de um olhar auto-referencial
e moralizador a um olhar que corre o risco de encontrar-se com os olhos dos
outros, dos diferentes, que se abra a novas aprendizagens e não tema as
mudanças; de um olhar superficial a outro olhar capaz de perfurar a realidade
até descobrir o Deus que “a todos dá a vida, respiração e tudo mais” (Atos
17,25)
“Ao sair caminhando, quando veio
alguém correndo...”. O encontro dá-se no caminho de Jesus
para Jerusalém, e o homem que vem à sua procura (no começo, Marcos não oferece
nenhum outro dado sobre ele, deixando o “efeito surpresa” para o final),
aproxima-se correndo, como que fustigado por uma urgência implacável, e se
ajoelha diante de Jesus, com respeito, como se visse nele seu último recurso
para encontrar resposta à pergunta que lhe angustia.
Não vem a Jesus como outros
personagens, oprimidos pela enfermidade, mas sim a partir de uma inquietude
interior: “o que fazer para ganhar a vida eterna”? Não parece
preocupá-lo a vida terrena, pois sua subsistência estava garantida; ele
pergunta por uma vida definitiva, própria do mundo futuro: como evitar que a
morte seja o fim de tudo? Quê fazer para “ganhar outra segurança”?
Podemos dizer que os evangelhos
des-velam dois tipos de perguntas dirigidas a Jesus:
A primeira é: “Senhor, o que
devo fazer para ganhar a vida eterna”? Esta pergunta nunca sai da
boca de um pobre, mas de quem já tem assegurada a vida terrena e, agora,
preocupa-se com a “poupança celestial”. É o caso do doutor da lei, de
Nicodemos, do homem rico... A resposta de Jesus é, no mínimo, irônica, pois
brota de uma pergunta que visivelmente o incomodava.
A outra pergunta é bem
diferente: “Senhor, o que devo fazer para ter vida nesta vida? Pois, sou
cego e quero enxergar, tenho a mão seca e preciso trabalhar, sou
paralítico e quero andar, minha filha está doente e quero vê-la curada...”
Em outras palavras, “o que devo
fazer para ter vida em plenitude”? Esta pergunta só é feita pela boca dos
pobres. Pobreza é estar ameaçado num direito fundamental de vida. A esses,
Jesus respondia com seriedade e acolhida. Interessante como a espiritualidade
de Jesus era a de quem gerava vida, sobretudo para aqueles que estavam
ameaçados em sua vida, dom maior de Deus. Ativava a Vida nesta vida.
No evangelho deste domingo, o jovem
expõe sua inquietude pela vida eterna em termos de posse (“ganhar”)
e, em relação aos mandamentos, diz que os “observava”. Em sua resposta, Jesus
emprega os mesmos termos, mas em outra direção: não naquela da posse ou
da herança, mas naquela do despojamento, do desprendimento, do
esvaziamento e da entrega... Isso é “o que lhe falta: vai, vende, dá,
segue-me...”
A inquietude do jovem estava centralizada
na vida eterna, e Jesus responde apontando para esta vida,
arrancando-a de um fatal “ponto morto”; diante de sua preocupação com o “além”,
Jesus indica-lhe o “aquém”. O caminho para conseguir a outra vida (“um tesouro
no céu”) passa necessariamente por uma maneira criativa e oblativa de usar os
bens, tendo como horizonte de vida o mundo dos pobres.
“Uma coisa lhe faltava”, não
para herdar a vida definitiva, mas para realizar em si mesmo o projeto de Deus,
para encontrar a felicidade que não possuía e a plenitude à qual sentia-se
chamado. Todo acesso a um “tesouro no céu” passa por um modo concreto de
“gerenciar” o tesouro que se possui aqui, ao estilo de Jesus (“depois, vem e
segue-me”). Participar da vida de Deus, que é o que consiste a vida eterna, é
participar em sua prodigalidade e em sua generosidade já nesta vida.
A nova sabedoria pede capacidade
para deixar-se surpreender e que os “diferentes” irrompam em seu mundo, mudem
seus ritmos, as dinâmicas, desestruturem seus tempos e seus espaços..., revirem
seus modos de viver, pensar, sentir e fazer; requer que a vida deixe certezas
herdadas, e esteja disposta a reinventar-se, quebrando “modos fechados” de ver
o mundo, para depois reconstrui-los à luz de uma perspectiva mais ampla.
O espanto se apoderou do jovem:
sentia-se diante de uma encruzilhada, na qual era convidado a deixar para trás
todos os caminhos já frequentados, e adentrar-se em outro absolutamente novo e
cheio de surpresas; mudar o “modo de proceder e viver” que estava
acostumado, desconectando-se de seus apegos às riquezas; atrever-se a crer numa
palavra que afirmava que a vida plena, feliz e abundante que ele buscava,
estava mais em deixar que em possuir; acolher o apelo para renunciar tudo
aquilo que até esse momento, constituía sua segurança, e abrir-se a uma vida de
partilha solidária....
Sentiu vertigem e se afastou
devagarinho, consciente de que os olhos do Mestre continuavam fixos nele,
esperando talvez que fizesse meia volta.
Jesus, ao fixar seu olhar no
interior do jovem, o desafiou a colocar-se “em movimento” (“vem comigo”),
pronto para começar algo novo, uma nova existência que não lhe era familiar e
que o faria percorrer caminhos desconhecidos, sendas que não sabia por onde o
levavam, porque estava fora da sua “ bolha de conforto”, confirmada pelo seu
grupo social e religioso. Jesus o convidou a fazer caminho com Ele.
No entanto, o jovem escolheu a
estabilidade, o lugar que lhe era familiar e que lhe dava segurança. Atrofiou
sua vida e esvaziou-a do sentido de eternidade.
Texto bíblico:
Mc 10,17-31
Na oração: Para
identificar aquilo que sobra e que vai se tornando um “peso”, é bom tomar
distância e considerar nossa vida a partir de outra perspectiva. É preciso
parar e atrever-nos a acessar a esse recipiente vital onde vamos acumulando e
perguntar-nos: quanto do que possuímos faz tempo que não usamos ou não
precisamos? Quanto do que ali vemos ocupa um lugar desnecessário? Quê
encontramos ali que não nos enche de esperança? Quê vemos ali que pode ser
passível de ser mudado? Se tivéssemos que fazer limpeza, por onde
começaríamos?... No nosso mundo interior, é necessário esvaziar para encher,
tirar para deixar lugar para aquilo que é essencialmente importante e decisivo.
- Por que não colocar um pouco de
ordem na sua mochila vital? O que lhe está sobrando?
- De verdade, de que você quer
preencher sua vida? Está sua vida cheia de Vida?
*Adroaldo Palaoro é
padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
Fonte: domtotal.com
Excelente reflexão 👏👏👏👏. Refrigera a alma.
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