quinta-feira, 24 de janeiro de 2019
PAPA AOS BISPOS CENTRO-AMERICANOS: ROMERO AMOU A IGREJA COMO MÃE QUE O GEROU NA FÉ
"Entre tais frutos proféticos
da Igreja na América Central, apraz-me destacar a figura de São Óscar Romero,
que tive o privilégio de canonizar recentemente no contexto do Sínodo dos
Bispos sobre os jovens", disse Francisco em seu discurso.
Cidade do Vaticano
Leia a íntegra do
discurso do Papa Francisco no encontro com os Bispos da América Central, nesta
quinta-feira (24/01), na Igreja de São Francisco de Assis, em Cidade do Panamá.
VISITA APOSTÓLICA
DO SANTO PADRE AO PANAMÁ
DISCURSO
Amados irmãos!
Agradeço ao Arcebispo
de São Salvador, D. José Luis Escobar Alas, as palavras de boas-vindas que me
dirigiu em nome de todos. Sinto-me feliz por poder encontrar-vos e partilhar,
de forma mais familiar e direta, os vossos anseios, projetos e sonhos de
pastores a quem o Senhor confiou o cuidado do seu povo santo. Obrigado pela
recepção fraterna.
Encontrar-me convosco
oferece-me também a oportunidade de poder abraçar e sentir-me mais próximo dos
vossos povos, poder fazer meus os seus anseios e também os seus desânimos mas
sobretudo aquela fé corajosa que sabe animar a esperança e provocar a caridade.
Obrigado por me permitirdes aproximar desta fé provada mas simples do rosto
pobre do vosso povo, que sabe que «Deus está presente, não dorme; está ativo,
observa e ajuda» (São Óscar Romero, Homilia, 16/XII/1979).
Este encontro
recorda-nos um acontecimento eclesial de grande relevância. Os pastores desta
região foram os primeiros a criar na América um organismo de comunhão e
participação que deu, e continua a dar, abundantes frutos. Refiro-me ao
Secretariado Episcopal da América Central (SEDAC): um espaço de comunhão,
discernimento e empenho que nutre, revitaliza e enriquece as vossas Igrejas.
Pastores que souberam progredir, dando um sinal que, longe de ser um elemento
apenas programático, indicou como o futuro da América Central – e de qualquer
outra região no mundo – passa necessariamente pela lucidez e capacidade que se
possui para ampliar a visão, unir esforços num trabalho paciente e generoso de
escuta, compreensão, dedicação e empenho, e poder assim discernir os novos
horizontes para onde nos está a conduzir o Espírito (cf. Francisco, Exort.
ap. Evangelii gaudium, 235).[1]
Nestes setenta e cinco
anos passados desde a sua fundação, o SEDAC procurou partilhar as alegrias e tristezas,
as lutas e esperanças dos povos da América Central, cuja história se forjou
entrelaçando-se com a história do vosso povo. Muitos homens e mulheres,
sacerdotes, consagrados, consagradas e leigos ofereceram a vida até ao
derramamento do próprio sangue, para manter viva a voz profética da Igreja
contra a injustiça, o empobrecimento de tantas pessoas e o abuso do poder.
Recordam-nos que «quem deseja verdadeiramente dar glória a Deus com a sua vida,
quem realmente se quer santificar para que a sua existência glorifique o Santo,
é chamado a obstinar-se, gastar-se e cansar-se procurando viver as obras de
misericórdia» (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 107). E
fazê-lo, não como esmola, mas como vocação.
Entre tais frutos
proféticos da Igreja na América Central, apraz-me destacar a figura de São
Óscar Romero, que tive o privilégio de canonizar recentemente no
contexto do Sínodo dos Bispos sobre os jovens. A sua vida e magistério são
fonte constante de inspiração para as nossas Igrejas e particularmente para
nós, bispos.
O lema que escolheu
para o brasão episcopal, e campeia na lápide da sua sepultura, expressa
claramente o seu princípio inspirador e a realidade da sua vida de pastor:
«Sentir com a Igreja». Uma bússola que marcou a sua vida na fidelidade, mesmo
nos momentos mais turbulentos.
Este é um legado que
pode tornar-se testemunho ativo e vivificante para nós, chamados por nossa vez
ao martírio pela entrega diária ao serviço dos nossos povos; e, sobre tal
legado, gostaria de me basear nesta reflexão que desejo partilhar convosco. Sei
que, entre nós, há pessoas que o conheceram pessoalmente – como o cardeal Rosa
Chávez – de modo que, se me equivocar em alguma observação, Eminência, pode-me
corrigir. Invocar a figura de Romero significa invocar a santidade e o caráter
profético que vive no DNA das vossas Igrejas particulares.
Sentir com a
Igreja
1. Percepção e
gratidão
Santo Inácio, ao
propor as regras para sentir com a Igreja, procura ajudar o exercitante a
superar qualquer tipo de falsas dicotomias ou antagonismos que possam reduzir a
vida do Espírito, na tentação habitual de acomodar a Palavra de Deus ao próprio
interesse. Assim, possibilita ao exercitante a graça de se sentir e saber parte
dum corpo apostólico maior do que ele, mas ao mesmo tempo conservando a
consciência real das suas forças e possibilidades: não dar parte de fraco, nem
fazer-se esquisito ou imprudente, mas sentir-se parte de um todo, que será
sempre mais do que a soma das partes (cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii
gaudium, 235) e que está acompanhado por uma Presença que sempre o superará
(cf. Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 8).
Por isso, na esteira
de São Óscar, gostaria de colocar, no centro deste primeiro ponto do sentir
com a Igreja, a percepção e a gratidão por tanto bem recebido, sem o merecer.
Romero foi capaz de sintonizar e aprender a viver a Igreja, porque amava
intimamente quem o gerara na fé. Sem este amor íntimo, será muito difícil
entender a sua história e conversão, dado que foi precisamente esse amor que o
guiou até à entrega no martírio; um amor, que brota da percepção de receber um
dom totalmente gratuito, que não nos pertence, libertando-nos de toda a
pretensão e tentação de nos considerarmos seus proprietários ou os únicos
intérpretes. Não inventamos a Igreja: esta não nasceu connosco e continuará sem
nós. Tal atitude, longe de nos abandonar à apatia, desperta uma insondável e
extraordinária gratidão que tudo alimenta. O martírio não é sinônimo de
pusilanimidade nem a atitude de alguém que não ama a vida nem sabe reconhecer o
seu valor. Pelo contrário, o mártir é aquele que é capaz de encarnar e traduzir
na vida esta ação de graças.
Romero sentiu com a
Igreja, porque, antes de mais nada, amou a Igreja como mãe que o gerou na fé,
considerando-se membro e parte dela.
2. Um amor, com
sabor a povo
Este amor, feito de
adesão e gratidão, levou-o a abraçar, com paixão mas também com dedicação e
estudo, toda a contribuição e renovação propostas pelo magistério do Concílio
Vaticano II. Nele encontrava a mão segura para seguir Cristo. Não foi ideólogo
nem ideológico; a sua ação nasceu duma compenetração sobre os documentos
conciliares. Iluminado por este horizonte eclesial, sentir com a Igreja
significa para Romero contemplá-la como Povo de Deus. Com efeito, o Senhor não
quis salvar-nos permanecendo cada um isolado e separado, mas quis constituir um
povo que O confessasse na verdade e O servisse na santidade (cf. Const.
dogm. Lumen gentium, 9). Um povo que, na sua totalidade, possui, guarda e
celebra a «unção do Santo» (Ibid., 12), e perante o qual Romero se colocava à
escuta para não recusar a inspiração d’Ele (cf. São Óscar Romero, Homilia,
16/VII/1978). Mostra-nos assim que o pastor, para procurar e encontrar o
Senhor, deve aprender e escutar as pulsações do coração do seu povo, sentir «o
odor» dos homens e mulheres de hoje até ficar impregnado das suas alegrias e
esperanças, tristezas e angústias (cf. Const. past. Gaudium et spes, 1) e,
deste modo, compreender em profundidade a Palavra de Deus (cf. Const.
dogm. Dei Verbum, 13). Deve escutar o povo que lhe foi confiado até
respirar e descobrir, através dele, a vontade de Deus que nos chama (cf.
Francisco, Discurso na Vigília de Oração pelo Sínodo sobre a Família,
4/X/2014). Deve escutar sem dicotomias nem falsos antagonismos, porque só o
amor de Deus é capaz de harmonizar todos os nossos amores num mesmo sentir e
olhar.
Em suma, para ele,
sentir com a Igreja é tomar parte na glória da Igreja, que consiste em trazer
no próprio íntimo toda a kenosis de Cristo. Na Igreja, Cristo vive no
meio de nós e, por isso, ela deve ser humilde e pobre, pois uma Igreja
arrogante, uma Igreja cheia de orgulho, uma Igreja autossuficiente não é a
Igreja da kenosis (cf. São Óscar Romero, Homilia, 1/X/1978).
3. Trazer dentro
de si mesmo a kenosis de Cristo
Esta não é apenas a
glória da Igreja, mas também uma vocação, um convite para fazermos dela a nossa
glória pessoal e caminho de santidade. A kenosis de Cristo não é algo
do passado, mas garantia atual para sentir e descobrir a sua presença operante
na história; uma presença que não podemos nem queremos silenciar, porque
sabemos e experimentamos que só Ele é «Caminho, Verdade e Vida». A kenosis de
Cristo lembra-nos que Deus salva na história, na vida de cada ser humano, já
que a mesma é também a sua história e, nela, vem ao nosso encontro (cf. São
Óscar Romero, Homilia, 7/XII/1978). Irmãos, é importante não ter medo de
nos aproximarmos e tocarmos as feridas do nosso povo, que são também as nossas
feridas, e fazê-lo segundo o estilo do Senhor. O pastor não pode estar longe do
sofrimento do seu povo; mais ainda, poderíamos dizer que o coração do pastor
mede-se pela sua capacidade de deixar-se comover à vista de tantas vidas
feridas e ameaçadas. Fazê-lo segundo o estilo do Senhor significa deixar que
este sofrimento toque e marque as nossas prioridades e gostos, o uso do tempo e
do dinheiro e inclusive a forma de rezar, para podermos ungir tudo e todos com
a consolação da amizade de Jesus numa comunidade de fé que possua e abra um
horizonte sempre novo que dê sentido e esperança à vida (cf. Francisco, Exort.
ap. Evangelii gaudium, 49). A kenosis de Cristo exige que se
abandone a virtualidade da existência e dos discursos para escutar o rumor e o
apelo constante de pessoas reais que nos desafiam a criar laços. E – permiti
que vos diga – as redes servem para criar vínculos, mas não raízes; são
incapazes de nos conferir pertença, de nos fazer sentir parte de um mesmo povo.
E, sem este sentir, todas as nossas palavras, reuniões, encontros, escritos
serão sinal duma fé que não soube acompanhar a kenosis do Senhor, uma
fé que ficou a meio do caminho.
- A kenosis de
Cristo é jovem
Esta Jornada Mundial
da Juventude é uma oportunidade única para sair ao encontro e aproximar-se ainda
mais da realidade dos nossos jovens, cheia de esperanças e sonhos, mas também
profundamente marcada por tantas feridas. Com eles, poderemos ler de forma
renovada a nossa época e reconhecer os sinais dos tempos, pois, como afirmaram
os Padres Sinodais, os jovens são um dos «lugares teológicos» onde o Senhor nos
dá a conhecer algumas das suas expetativas e desafios para construir o futuro
(cf. Sínodo sobre os Jovens, Documento final, 64). Com eles, poderemos ver
melhor como tornar o Evangelho mais acessível e credível no mundo em que
vivemos; são uma espécie de termômetro para saber a que ponto estamos como
comunidade e como sociedade.
Os jovens trazem
dentro uma inquietude que devemos apreciar, respeitar, acompanhar e que faz
muito bem a todos nós, porque nos provoca lembrando-nos que o pastor nunca
deixa de ser discípulo e está a caminho. Esta sã inquietude coloca-nos em
movimento, antecipando-nos. Assim no-lo recordaram os Padres Sinodais ao dizer
que, «em certos aspetos, os jovens podem estar mais adiantados do que os
pastores» (Ibid., 66). Deve-nos encher de alegria constatar que a sementeira
não foi em vão. Muitas das aspirações e intuições, que formam tal inquietude,
desenvolveram-se dentro da família, alimentadas por uma avó ou uma catequista,
ou na paróquia, na pastoral educativa ou juvenil; desejos, que cresceram na
escuta do Evangelho e em comunidades de fé viva e fervorosa onde este encontra
terra onde germinar. Quanto devemos agradecer pelo facto de haver jovens
desejosos de Evangelho! Esta realidade estimula-nos a um esforço maior para
ajudá-los a crescer, oferecendo-lhes espaços maiores e melhores que os possam
gerar segundo o sonho de Deus. A Igreja, por sua natureza, é Mãe e, como tal,
gera e resguarda a vida protegendo-a de tudo o que possa ameaçar o seu
desenvolvimento: uma gestação na liberdade e para a liberdade. Por isso,
exorto-vos a promover programas e centros educativos que saibam acompanhar,
apoiar e responsabilizar os vossos jovens; «roubai-os» à rua, antes que a
cultura de morte, «vendendo-lhes fumo» e soluções mágicas, se apodere e
aproveite da sua imaginação. Fazei-o, não com paternalismo como quem olha de
cima para baixo, pois não é isso o que o Senhor nos pede, mas como pais, como
de irmão para irmão. São rosto de Cristo para nós e, a Cristo, não O podemos
olhar de cima para baixo, mas de baixo para cima (cf. São Óscar Romero, Homilia,
2/IX/1979).
Infelizmente, há
muitos jovens que foram seduzidos por respostas imediatas que hipotecam a vida.
Diziam-nos os Padres Sinodais que aqueles, por constrição ou falta de
alternativas, se encontram mergulhados em situações altamente conflituosas e
sem solução à vista: violência doméstica, feminicídio – uma chaga, que aflige o
nosso continente –, bandas armadas e criminosas, tráfico de droga, exploração
sexual de menores e de tantos que já não o são, etc. Custa constatar que, na
raiz de muitas destas situações, está uma experiência de orfandade, fruto de
uma cultura e uma sociedade transviada. Lares desfeitos devido tantas vezes a
um sistema econômico que deixou de ter como prioridade as pessoas e o bem
comum, fazendo da especulação o «seu paraíso» onde continuar a «engordar» sem
se importar à custa de quem. Assim, os nossos jovens sem o calor duma casa, nem
família, nem comunidade, nem pertença são deixados à mercê do primeiro
vigarista que lhes apareça.
Não nos esqueçamos que
«uma verdadeira dor que sai do homem pertence, antes de tudo, a Deus» (Georges
Bernanos, Diario de un cura rural, 74). Não separemos o que Ele quis unir
no seu Filho.
O futuro exige que se
respeite o presente, reconhecendo a dignidade das culturas dos vossos povos e
esforçando-se por valorizá-las. Também nisto se joga a dignidade: na
auto-estima cultural. Os vossos povos não são o «horto» da sociedade nem de
ninguém; têm uma história rica que deve ser aceite, valorizada e incentivada.
Nestas terras, foram plantadas as sementes do Reino; temos obrigação de as
identificar, cuidar e proteger para que nenhum bem plantado por Deus definhe
devido a interesses espúrios que, por todo o lado, semeiam corrupção e crescem
despojando os mais pobres. Cuidar das raízes é tutelar o rico patrimônio
histórico, cultural e espiritual que esta terra soube amalgamar ao longo dos
séculos. Comprometei-vos e erguei a voz contra a desertificação cultural e
espiritual dos vossos povos, que provoca uma indigência radical, pois deixa-os
sem a indispensável imunidade vital que sustenta a dignidade nos momentos de
maior dificuldade.
Na última carta
pastoral, afirmáveis: «Ultimamente a nossa região tem sofrido o impacto da
migração realizada de forma nova, por ser maciça e organizada, e que evidenciou
os motivos que levam a uma migração forçada e os perigos que cria para a
dignidade da pessoa humana» (SEDAC, Mensagem ao Povo de Deus e a todas as
pessoas de boa vontade, 30/XI/2018).
Muitos dos migrantes
têm rosto jovem; procuram um bem maior para a própria família, não temendo
arriscar e deixar tudo para lhe oferecer o mínimo de condições que garantam um
futuro melhor. Aqui não basta a denúncia, mas devemos anunciar concretamente
uma «boa nova». Graças à sua universalidade, a Igreja pode oferecer uma
hospitalidade fraterna e acolhedora, de modo que as comunidades de origem e
destino dialoguem e contribuam para superar medos e difidências e fortalecer os
laços que as migrações, no imaginário coletivo, ameaçam romper. «Acolher,
proteger, promover e integrar» podem ser os quatro verbos com que a Igreja,
nesta situação migratória, conjugue a sua maternidade no momento atual da
história (cf. Sínodo sobre os Jovens, Documento final, 147).
Todos os esforços que
puderdes realizar para lançar pontes entre as comunidades eclesiais,
paroquiais, diocesanas, bem como através das Conferências Episcopais,
constituem um gesto profético da Igreja, que, em Cristo, é «o sacramento, ou
sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero
humano» (Const. dogm. Lumen gentium, 1). Assim dissipa-se a tentação de
ficar apenas pela denúncia e realiza-se o anúncio da Vida nova que o Senhor nos
dá.
Lembremo-nos da exortação
de São João: «Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com
necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode
permanecer nele? Meus filhinhos, não amemos com palavras nem com a boca, mas
com obras e com verdade» (1 Jo 3, 17-18).
Todas estas situações
nos interpelam; são situações que nos chamam à conversão, à solidariedade e a
uma ação educativa incisiva nas nossas comunidades. Não podemos ficar
indiferentes (cf. Sínodo sobre os Jovens, Documento final, 41-44). O mundo
descarta: sabemo-lo e lamentamo-lo. A kenosis de Cristo, não: já o
experimentamos e continuamos a experimentar na própria carne com o perdão e a
conversão. Esta tensão constringe-nos a questionar-nos sem cessar: De que parte
queremos estar?
- A kenosis de
Cristo é sacerdotal
São bem conhecidos a
amizade do Arcebispo Romero com o Padre Rutilio Grande e o impacto que o
assassínio deste teve na sua vida; foi um acontecimento que marcou
profundamente o seu coração de homem, sacerdote e pastor. Romero não era um
administrador de recursos humanos, não geria pessoas nem organizações; sentia
com amor de pai, amigo e irmão. Uma medida um pouco alta, mas útil para avaliar
o nosso coração episcopal, uma medida à vista da qual podemos interrogar-nos:
Quanto me afeta a vida dos meus sacerdotes? Que impacto deixo ter em mim aquilo
que vivem, chorando com as suas dores, congratulando-me e regozijando-me com as
suas alegrias? Comecemos a medir o funcionarismo e clericalismo eclesiais –
infelizmente tão difusos, constituindo uma caricatura e uma perversão do
ministério – por estes interrogativos. Não é questão de mudar estilos, hábitos
ou linguagem (certamente importantes); é questão sobretudo de impacto e
capacidade de espaço, nos nossos programas episcopais, para receber, acompanhar
e sustentar os nossos sacerdotes: um «espaço real» para nos ocuparmos deles.
Isto faz de nós pais fecundos.
Normalmente recai
sobre eles, duma maneira especial, a responsabilidade de fazer com que este
povo seja o povo de Deus. Encontram-se na primeira linha: carregam sobre si o
cansaço do dia e o seu calor (cf. Mt 20, 12), estão sujeitos a
inumeráveis situações diárias que podem deixá-los mais vulneráveis e, por isso,
precisam também da nossa proximidade, da nossa compreensão e encorajamento, da
nossa paternidade. O resultado do trabalho pastoral, da evangelização na Igreja
e da missão não se baseiam na riqueza dos meios e recursos materiais, nem na
quantidade de eventos ou atividades que realizamos, mas na centralidade da
compaixão: um dos grandes distintivos que podemos, como Igreja, oferecer aos
nossos irmãos. A kenosis de Cristo é a expressão máxima da compaixão
do Pai. A Igreja de Cristo é a Igreja da compaixão; e isto começa em casa. É
sempre bom perguntar-nos como pastores: Que impacto tem em mim a vida dos meus
sacerdotes? Sou capaz de ser um pai ou consolo-me com ser um mero executor?
Deixo que me incomodem? Lembro-me das palavras de Bento XVI quando falava aos
seus compatriotas no início do pontificado: «Cristo não nos prometeu uma vida confortável.
Quem deseja comodidades, com Ele errou direção. Mas Ele mostra-nos o caminho
rumo às coisas grandes, o bem, rumo à vida humana autêntica» (Discurso às
Delegações e peregrinos alemães, 25/IV/2005).
Sabemos que o nosso
trabalho, nas visitas e encontros que realizamos, sobretudo nas paróquias, tem
uma dimensão e uma componente administrativas, a que é necessário atender. É
preciso certificar-se que seja feito, mas isto não significa que caiba a nós
mesmos utilizar em tarefas administrativas o pouco tempo que temos. O
fundamental nas visitas e que não podemos delegar, é a escuta. Há muitas coisas
que fazemos todos os dias e que deveríamos confiar a outrem. Aquilo que, ao
contrário, não podemos delegar é a capacidade de ouvir, a capacidade de acompanhar
a saúde e a vida dos nossos sacerdotes. Não podemos delegar noutros a porta
aberta para eles; uma porta aberta para criar as condições que tornem possível
a confiança mais do que o medo, a sinceridade mais do que a hipocrisia, o
intercâmbio franco e respeitoso mais do que o monólogo disciplinar.
Vêm-me à memória estas
palavras de Rosmini: «Não há dúvida de que apenas os grandes homens podem
formar outros grandes homens (…). Nos primeiros séculos, a casa do bispo era o
seminário dos sacerdotes e diáconos. A presença e a santa conversação do seu
prelado revelavam-se uma lição candente, contínua, sublime, na qual se aprendia
conjuntamente a teoria nas suas doutas palavras e a prática nas assíduas
ocupações pastorais. E foi assim que os jovens Atanásios cresceram junto dos
Alexandres» (António Rosmini, Las cinco llagas de la santa Iglesia, 63).
É importante que o
pároco encontre o pai, o pastor no qual «se vê espelhado» e não o administrador
que quer «passar revista às tropas». Com todas as coisas em que nos diferenciamos
e até mesmo aquelas em que não estamos de acordo e as discussões que possam
haver – sendo normal e desejável que existam –, é fundamental que os
padres sintam o bispo como um homem capaz de gastar-se e expor-se por eles,
fazê-los caminhar para diante e estender-lhes a mão quando estão empantanados;
como um homem de discernimento que saiba orientar e encontrar
caminhos concretos e praticáveis nas várias encruzilhadas de cada história
pessoal.
Etimologicamente, o
termo «autoridade» deriva da raiz latina augere que significa
aumentar, promover, fazer progredir. No pastor, a autoridade consiste de modo
particular em ajudar a crescer, em promover os seus presbíteros, em vez de se
promover a si mesmo (isto faz dele um solteirão). A alegria do pai/pastor é ver
que os seus filhos cresceram e tornaram-se fecundos. Irmãos, seja esta a nossa
autoridade e o sinal da nossa fecundidade.
- A kenosis de
Cristo é pobre
Irmãos, sentir com a
Igreja é sentir com o povo fiel, o povo de Deus que sofre e espera; é saber que
a nossa identidade ministerial nasce e compreende-se à luz desta pertença única
e constitutiva do nosso ser. Neste sentido, gostaria de recordar convosco o que
Santo Inácio nos escrevia a nós, jesuítas: «A pobreza é mãe e muro», gera e
preserva. Mãe, porque nos chama à fecundidade, à geração, à capacidade de
doação que seria impossível num coração avarento ou empenhado a acumular. E
muro, porque nos protege duma das mais subtis tentações que nós, consagrados,
temos de enfrentar: a mundanidade espiritual, o revestir de valores religiosos
e «piedosos» a ambição de poder e protagonismo, a vaidade e, inclusivamente, o
orgulho e a soberba. Muro e mãe, que nos ajudam a ser uma Igreja cada vez mais
livre, porque está centrada na kenosis do seu Senhor. Uma Igreja, que
não deseja que a sua força esteja – como dizia D. Romero – no apoio dos
poderosos ou da política, mas que disso se despreende com nobreza para caminhar
sustentada unicamente pelos braços do Crucificado, que é a sua verdadeira
força. E isto traduz-se em sinais concretos e evidentes; isto interpela-nos e
impele-nos a um exame de consciência a propósito das nossas opções e
prioridades no uso dos recursos, influências e posições. A pobreza é mãe e
muro, porque guarda o nosso coração para que não escorregue em concessões e
comprometimentos que enfraquecem a liberdade e parresia a que nos
chama o Senhor.
Irmãos, antes de
terminar, coloquemo-nos sob o manto da Virgem, rezemos juntos para que Ela
guarde o nosso coração de pastores e nos ajude a servir melhor o Corpo de seu
Filho, o santo Povo fiel de Deus que caminha, vive e reza aqui na América
Central.
Que Jesus vos abençoe
e a Virgem Maria vos proteja! E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim.
Muito obrigado!
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