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Sentimo-nos
como a vinha devastada e pisoteada,
destruída
pela lama da barragem de rejeitos que se rompeu em
Brumadinho,
Minas Gerais. (Douglas Magno/ AFP)
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A ganância dos inimigos passou
pisoteando vidas que jamais deveriam terminar de maneira tão violenta
O Salmo 80 é uma súplica coletiva que muito provavelmente se
popularizou ao longo das épocas em Israel, sendo rezado pelo povo em sua
história, sobretudo em contextos de fortes crises e nos ambientes nos quais a
vida e a fé estavam ameaçadas. A consciência do salmista de que a vinha do
Senhor, que fora arrancada do Egito, plantada e cultivada (cf. v. 9-10) numa
terra preparada, está agora abandonada ao poder e ação dos inimigos (cf. v.
13-14), faz-nos acreditar que a composição do salmo remonte aos períodos de
conflitos com outros povos estrangeiros, nos quais Israel se viu invadido e
devastado. A compreensão de que Deus derrubou as cercas que protegiam a vinha,
permitindo que os carrascos a destruíssem se dá na esteira da consciência de
que a ira inflamada do Senhor está intimamente relacionada à infidelidade do
povo por causa dos seus pecados. Mas o refrão que se repete ao longo do salmo
reconhece a fidelidade de Deus e, por isso, consiste em um pedido de
restauração do povo que se sebe devastado. Se Deus visitar sua vinha (cf. v.
15) e voltar seu olhar sobre seu povo (cf. v 4;8;20), eles serão salvos e
viverão.
A metáfora da vinha foi fortemente utilizada na tradição judaica,
ganhando bastante destaque nas literaturas profética e sapiencial. Jesus afirma
de si que ele é a videira verdadeira que está unido ao Pai e no qual todos nós
devemos permanecer (cf. Jo 15). Logicamente, Jesus recapitula em si a
experiência do povo de Deus capaz de responder com fidelidade ao projeto do
Reino de paz e fraternidade. À luz da vitória de Cristo sobre a morte, a
experiência da videira deverá ser outra, não mais abandonada e destruída, mas
aberta aos cuidados do agricultor que é o Pai. Nesse sentido, em Jesus temos
realizado de uma vez por todas a súplica do salmista do Salmo 80. Deus visitou
sua vinha, voltou seu olhar, salvou e deu a possibilidade de uma nova vida.
Olhando para nossa realidade, o sentimento do povo antigo que se
reunia para rezar o Salmo 80 vem-nos a garganta como um grito de dor sem fim:
“Deste-lhe a comer um pão de lágrimas e tríplice medida de lágrimas a beber”
(v.6). Sentimo-nos como a vinha devastada e pisoteada, destruída pela lama da
barragem de rejeitos que se rompeu em Brumadinho, Minas Gerais. A ganância dos
inimigos passou pisoteando mães, pais, filhos, sobrinhos, netos, filhas,
namoradas, pessoas com relações e histórias, vidas que jamais deveriam terminar
de maneira tão violenta. O lucro ri de nós. O capitalismo cospe na nossa cara.
O pecado cometido não é o do povo humilde e simples da cidade e dos
trabalhadores e trabalhadoras da VALE, mas dos empresários, pessoas que ainda
dormem em paz com as mãos sujas de lama e sangue inocente. Essas pessoas estão
sempre esquecidas dos povos, seus costumes, ambientes naturais, suas criações e
plantações, pois estão focados nas metas e resultados, no dinheiro que corrói a
consciência humana e os faz deixar de pensar nas pessoas. Tem parte nesse
pecado o Estado com suas leis caducas, sua fiscalização precária e o lobby
político para a manutenção de interesses e privilégios. Tudo isso é consolidado
como práxis de um modelo perverso de sociedade que degrada, exclui e mata todos
os dias pessoas concretas como eu e você. Só em Brumadinho, o capitalismo
assassinou vidas que jamais poderão ser recuperadas a qualquer preço das
indenizações. Trata-se de uma maldade inescrupulosa.
Compreendendo que Deus cuida do seu povo em todos os momentos da
vida e que acolhe as súplicas sinceras que brotam dos corações dilacerados, à
luz da ressurreição de Jesus que é a videira verdadeira desejamos que, muito em
breve, a esperança pela restauração seja o sentimento mais forte que ajudará a
dar novo sentido à vida dos que perderam seus entes queridos no mar de lama e
de ganância. Que o Deus que visita e permanece com a sua vinha, mesmo quando
ela está devastada e ferida, traga a consolação e a paz, Ele que dá a todos,
sem distinções, o Reino no qual não mais haverá morte, nem pranto, nem luto,
nem dor.
*Tânia da Silva Mayer é mestra e bacharela em Teologia pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE); graduanda em Letras pela
UFMG. Escreve às terças-feiras. E-mail: taniamayer.palavra@gmail.com
Fonte: domtotal,com
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