A FORÇA DE UMA PALAVRA INSPIRADA : REFLEXÃO SOBRE O EVANGELHO DO IV DOMINGO DO TEMPO COMUM - LC 4,21-30
De tanto usá-las, talvez as palavras tenham
perdido o sentido.
(freestocks.org/ unsplash)
“Quando ouviram estas palavras
de Jesus, todos na sinagoga ficaram furiosos” (Lc 4,28)
O Evangelho deste domingo é
inspirador: as pessoas se admiram com as “palavras cheias de encanto que saíam
da boca de Jesus”. Palavras que despertam assombro nelas; palavras
diferentes que ativam suas vidas, palavras que não deixam ninguém indiferente;
palavras provocativas porque carregam o impulso do novo; palavras que incomodam
porque lhes faziam perguntar por suas próprias palavras, seu modo habitual de
ser e de viver...
A primeira reação dos ouvintes foi
de admiração pela pessoa de Jesus e por sua mensagem. Mas, rapidamente,
passaram da admiração à surpresa: quem pensa ser ele, para dizer tais
coisas? «Não é este o filho de José”? Reduzem-no assim à sua
herança natural; não haviam entendido que, dali em diante, têm à sua frente um
novo Jesus, o Filho muito amado do Pai. A única razão que dão para rejeitar as
pretensões de Jesus é que Ele é simplesmente mais que um do povoado, conhecido de
todos.
Isto é revelador por parte do
evangelista Lucas. No início de sua vida pública, Jesus se revela como uma
presença original, pois sendo “um entre tantos”, no entanto, sua presença
despertava perguntas, dúvidas e até incompreensões e discussões. Todo seu
povoado o via como um homem a mais, um galileu a mais.
Mas, sendo “um entre tantos”,
começou a pensar, viver e agir com um estilo único que o diferenciava de todos.
A grandeza de Jesus está justamente em que, sendo um no meio de tantos, foi
capaz de descobrir o que Deus esperava d’Ele.
Jesus não é um extraterrestre que
traz poderes especiais de outro mundo, mas um ser humano que tira da
profundidade de seu ser o que Deus colocou no coração de todos. Fala daquilo
que encontrou no seu interior e nos convida a descobrir em nós o mesmo que Ele
descobriu.
Sua vida começou a desconcertar as
pessoas; seu modo original de falar desconcertava a todos; sua liberdade de
espírito e seus critérios desconcertavam as pessoas. Diante d’Ele só lhes
restava fazer perguntas: quem é Ele? Como explicar sua proposta de vida?
Jesus não quis deixar o mundo como o
encontrou; Ele não veio ao mundo para deixá-lo tal como estava; Jesus veio
mudar as coisas e deixar-nos um mundo diferente; não um mundo com soldas e
remendos, mas um mundo mais habitável. Por isso, no início de sua vida pública,
Ele se revela como uma presença diferente, apresentando a proposta de um
mundo diferente.
Tudo o que era antigo chegou ao fim;
um mundo novo está aberto, diante de todos.
Pois, agora, a hora chegou. Os
ouvintes de Jesus entendem que vão ter de mudar, de transformar-se. E isto é
inquietante: estavam tão tranquilos até aquele momento.
As pessoas de sua comunidade viviam
mergulhadas na inércia, no costumeiro e não queriam se abrir ao novo, às mudanças.
Preferiam a vulgaridade de ser como todo o mundo à originalidade de ser
diferente; preferiam a monotonia de viver como todos e passar desapercebido na
massa, sem despertar a atenção para uma original e provocativa presença.
Os moradores de Nazaré estavam
fechados à presença divina. E nos oferecem, assim, uma imagem daquilo que, com
frequência, também vivemos: o julgamento que fazemos dos outros, o nosso
preconceito e a nossa intolerância diante de quem pensa, sente e vive de
maneira diferente.
As palavras de Jesus na sinagoga de
Nazaré questionam, também hoje, o sentido que nossas palavras têm; elas nos
fazem tomar consciência daqueles que se sentem movidos por nossas palavras, nos
fazem perguntar sobre a inspiração e a força das palavras que brotam do nosso
interior.
Quantas palavras temos dito ou
escrito hoje? Talvez tenhamos enviado um correio; ou feito um comentário no
Whatsapp ou no blog de um amigo; ou tenhamos conversado junto a uma mesa de
bar, partilhando conselhos, trocando idéias...; ou tenhamos falado com nossa
mãe pelo telefone...
Vivemos saturados de palavras. Elas
nos assaltam nas canções, estão nos perfis virtuais, nos livros, em mil e uma
conversações. Falamos, dizemos, escrevemos, escutamos, lemos...
E de tanto usá-las, talvez as palavras
tenham perdido o sentido. Estamos tão acostumados a proferi-las que não
nos damos conta do muito que significam. Então falamos, mas não vivemos;
digitamos palavras, mas não transmitimos calor humano. Assustam-nos converter a
palavra em palavreado crônico.
Há palavras que se gastam de tanto
serem usadas; há afirmações que, de tanto serem repetidas, perdem sua força.
Palavras que perdem seu valor, caindo no terreno comum das “coisas baratas”.
Pronunciar, sem enrubescer, palavras que deveriam ser ditas com extremo cuidado
como compaixão, justiça, amor, vida... É bonito pensar no poder das palavras,
ou em nosso poder e responsabilidade ao pronunciá-las.
Sabemos que o ser humano chegou a
ser o que é graças a esse dom evolutivo que é a palavra; ela nos permite
pensar, dar nomes às coisas, aos outros seres, às emoções que sentimos dentro
de nós e comunicar-nos eficazmente com nossos semelhantes.
Claro que, como somos seres
complexos, esse dom, que é nossa capacidade verbal, pode ser usada para
diferentes fins. Podemos utilizá-la para reconhecer e transmitir o que de
verdade sentimos ou pensamos ou enganar-nos a nós mesmos e aos nossos
interlocutores.
A diferença radical está no fato de
que com a palavra podemos cuidar, acariciar, conhecer, irradiar consolo ou amor,
ser artífices de paz e sossego... Ou, podemos gerar ódios, rancor, alimentar
preconceitos e julgamentos, provocar invejas, trair, dividir...
Nas “sinagogas pós-modernas” (redes
sociais) temos a oportunidade de proferir palavras que ampliam a vida, elevam o
outro, abrem horizontes de sentido...; elas também se revelam como o espaço
onde escutar palavras oriundas de um coração e uma mente diferentes, que
despertam mudanças, a busca do novo... Infelizmente, como nos tempos de Jesus,
também este ambiente tem sido o local da expressão de palavras ásperas de
julgamento e de indiferença, carregadas de preconceito e intolerância. Ali
encontramos a soberba disfarçada de verdade, o conservadorismo farisaico que
cria distâncias, o medo camuflado de firmeza, as inseguranças alimentando
divisões... Estas atitudes nunca deixam espaço para o novo, a renovação
torna-se impossível e a inovação se extingue... Nesses ambientes disfarçados de
ortodoxia, fundamentalismo, moralismo, legalismo... nem o Espírito tem espaço
para atuar e inspirar “palavras de vida”.
Jesus foi “deletado de sua
comunidade” porque ousou pensar de maneira diferente; o seu anúncio e as suas
opções rompiam com esquemas mentais arcaicos e petrificados.
Por isso, dentro de nossas sinagogas
atuais, é preciso alimentar mais sobriedade frente à “falação” vazia”; mais
sinceridade frente à mentira; mais acolhimento frente à indiferença...
Talvez o silêncio pode ser algo novo
quando não se tem uma palavra diferente que dizer. Mas é certo que se cheguemos
a dizer algo novo, algo nosso, há uma terra sedenta que espera ansiosa essa
chuva.
Texto bíblico: Lc
4,21-30
Na oração: diante
das palavras que brotam de minha sinagoga interior, perguntar-me:
- quantos se sentem tocados pelas
minhas palavras? Quantos daqueles que as escutam se sentem anima-dos,
vibrantes, curados... Até onde falo daquilo que vivo? Minhas palavras despertam
o coração das pessoas?
- Ou, pelo contrário, quantos
daqueles que me escutam se sentem entendiados e cansados diante de meu
palavreado crônico, de minhas críticas ácidas, de meus julgamentos
preconceituosos?...
*Adroaldo Palaoro é
padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
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