Você
se assusta com essa tentativa de ressignificar
a
ditadura do Brasil? (Reprodução)
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Em um período em que exaltam ditaduras,
torturadores e repropõem cruzadas, momento propício para refletirmos qual rumo
o cristianismo tem tomado.
O historiador alemão Reinhart
Koselleck, cujo nome está associado a uma prática metodológica chamada
“história dos conceitos”, faz uma reflexão interessante sobre a
contemporaneidade. Em seu livro Futuro Passado - contribuição à
semântica dos tempos históricos, ele diz que o presente, antes marcado por
um expressivo eco de futuro, carrega, no século XXI, uma forte obsessão pelo
passado. E não é necessário ir muito longe para constatar isso.
Você se assusta com essa tentativa
de ressignificar a ditadura do Brasil? Pois bem. Apesar de ser duro admitir,
tal proposta faz parte de um “espírito bélico” que propaga-se em muitos
ambientes religiosos do nosso país. É tão verdade que a maioria daqueles que
apoiam a tal “comemoração do golpe militar” são justamente os católicos e
protestantes autodenominados “pios, devotos e honrados”, os “soldados de
Cristo” que combatem o “bom combate da fé”.
Aquela imagem “inocente” do
cavaleiro templário colocada no alto da página de muitos perfis do Facebook é
apenas uma demonstração de que, mais uma vez, muitos cristãos têm se rendido às
ingerências políticas de grupos que conduzem “guerras santas” contra um inimigo
fabricado e politizado. Basta discordar do “alto comando” para ser taxado de
comunista, inimigo do país ou anti-cristão. E viva o maniqueísmo difundido
pelos poderosos que, sorrateiramente, envenena os cristãos!
O estudioso alemão Adolf Harnack, um
dos maiores historiadores do cristianismo do século passado, trata de um tema
que condiz com o que estamos tratando neste artigo. Ele questiona como as
expressões militares - utilizadas como figura de linguagem em muitos escritos
cristãos (Evangelhos, Cartas de Paulo e Apocalipse) -, possam ter tido uma
influência concreta na formação de um “belicismo cristão” a partir de meados do
século IV. A milícia metafórica, no caso, se transformou em serviço militar
pela causa de Cristo: de perseguidos, os cristãos se tornaram perseguidores
após a promulgação do édito de Tessalônica, em 380 d.C, quando o imperador
Teodósio I transformou o cristianismo em religião oficial do império.
Hoje em dia, faz-se guerra até
contra o próprio papa. É como se os profetas da atualidade também fossem
inimigos a ser combatidos. Para os tais “soldados de Cristo”, o que vale é o
retorno a uma tradição caricaturada que flerta com véus, saias longas, textos
em latim e rubricas, não à verdadeira tradição da Igreja cuja essência se
fundamenta na vida de Cristo e acompanha os sinais dos tempos.
Quando o pontífice publicou a
encíclica Laudato Si’, em 2015, ele foi alvo de críticas por
parte de muitos setores conservadores. Dizia-se que “há coisas mais urgentes a
serem tratadas pela Igreja em vez de se preocupar com o meio ambiente”. O que
muitos não sabem, é que estamos na iminência de, em um futuro não muito
distante, presenciarmos uma Water Conflict em largas
proporções - uma guerra pelos recursos hídricos. Para se ter uma ideia, a CIA
já registrou mais de 500 conflitos ligados à água. Além disso, estima-se que,
em 2030, 47% da população mundial padecerá pela escassez desse recurso natural
insubstituível.
Agora, me diz: o bom cristão é
aquele que previne guerras ou as provoca? Que o pontificado de Papa Francisco e
o testemunho de homens e mulheres que fizeram da cruz de Cristo um instrumento
de redenção e libertação, não de guerras, promovam a conversão dos cristãos que
transformaram a religião em instrumento de poder, conflito e intolerância.
*Mirticeli Dias de
Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia
Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano
para meios de comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas
jornalistas brasileiras credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa
da Santa Sé.
Fonte:domtotal.com
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