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Páscoa
é tocar e acompanhar Jesus nos chagados da vida.
(Free Bible Images/ Lomo Project)
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Reflexão sobre a liturgia do II Domingo da Páscoa - Jo
20,19-31
“...mostrou-lhes as mãos e o lado” (Jo20,20)
Os relatos das
aparições nos advertem de que não se trata de uma crônica de acontecimentos. O
que João quer nos comunicar são vivências internas dos
discípulos reunidos; o que ele quer nos transmitir está mais além daquilo que
entra pelos sentidos ou podemos imaginar.
Destacamos
algumas das expressões do relato de João para formular a fé no
Crucificado/Ressuscitado.
O relato deste
domingo se revela como uma catequese muito rica em conteúdo. Por uma parte,
vincula a ressurreição com a paz, o dom do Espírito, o perdão, a fé, a
missão... Por outra, parece querer responder aos cristãos da “segunda
geração”, que já não haviam conhecido o Jesus histórico, nem haviam participado
daquela primeira experiência “fundante”. É a eles, representados na figura de
Tomé, que lhes é dito:
“Bem-aventurados
aqueles que creram sem terem visto!”
São muitos os que
se sentem escandalizados com o Evangelho deste 2º Domingo da Páscoa. Não é
possível que Jesus Ressuscitado conserve as chagas no seu
corpo! Pode-se tocá-lo como se tocam as feridas sangrentas de um torturado, as
mãos frias de um moribundo, os pés feridos de um imigrante?
Frente aos riscos
de um falso espiritualismo que quer esquecer-se da “carne”, frente a todas as
tentativas de entender a Páscoa como pura mudança de consciência, o Evangelho
de João quis ressaltar a corporalidade do Cristo Ressuscitado
e o faz desta forma, ou seja, dando um destaque especial às chagas das mãos e
do lado aberto; o mesmo corpo do amor vivido e da entrega, o corpo ferido com
cravos e lança, se converte assim em um sinal visível de Ressurreição, sinal que
continua presente na realidade das pessoas.
A morte de Jesus
não foi um acidente de percurso, não é algo que se esquece, sinal de sua
condição humana; o Senhor ressuscitado continua sendo Aquele que leva em suas
mãos e em seu lado as feridas de sua entrega, os sinais de seu amor crucificado
em favor da humanidade. O Senhor ressuscitado continua sendo Aquele que sofre
em todos os que sofrem no mundo.
Como cristãos,
professamos: “o Ressuscitado é o Crucificado”; por isso é
necessário “tocar suas feridas”, ali onde Ele sofre naqueles que sofrem.
Portanto, contemplar o Ressuscitado chagado impulsiona a continuar encontrando
o mesmo Jesus nas chagas de todos os sofredores da história.
É surpreendente
que o evangelho de João tenha conservado o registro da experiência de Madalena;
mas, mais surpreendente ainda é o fato de que tenha recolhido a experiência de
Tomé, para assim revelar-nos que a Páscoa significa tocar com mais força, de um
modo mais profundo, as chagas de Jesus ressuscitado.
Maria Madalena
havia “tocado em Jesus” no horto pascal, porque o amava e pela alegria de saber
que Ele estava vivo. Mas, depois teve que deixar de tocá-lo fisicamente (“não
me toques”), a fim de tocá-lo e conhecê-lo de um modo diferente, levando a
mensagem da Vida de Jesus aos discípulos, fechados numa casa. Ela que o tocou
com amor, foi a primeira das ressuscitadas com Jesus no jardim de Vida da
Páscoa.
À diferença de
Madalena, Tomé precisou aprender a ativar os sentidos: olhar, escutar,
tocar...; precisou descer do pedestal dos seus dogmas, das ideias separadas,
para retomar a experiência concreta do amor de Jesus, que é a vida entregue
pelos outros, amor chagado. Não basta crer em Jesus, separado de sua vida de
compromisso em favor da vida; para crer nele é preciso querer tocar suas
chagas, que são as chagas do mundo ferido por falta de amor.
Tomé começou
sendo o apóstolo de uma espiritualidade sem compromisso social, sem entrega
profética, sem solidariedade com os pobres e excluídos. Não era um apóstolo
“cristão” de Jesus crucificado, mas um praticante da religião desencarnada que
alguns, ainda hoje, continuam defendendo.
“Tocar” em Jesus,
colocar o dedo em suas chagas e a mão no seu lado aberto, é descobrir a ferida
sangrenta da história humana, vinculando assim a ressurreição com a dor dos
homens e mulheres oprimidos(as), torturados, enfermos, assassinados...
Jesus
Ressuscitado continua levando em suas mãos e em seu peito a ferida da história,
não só as chagas dos cravos e o corte da lança em seu próprio corpo, mas a
chaga dos enfermos e expulsos, dos famintos e oprimidos e a infinidade de
pessoas que continuam sofrendo ao nosso lado.
O Ressuscitado se
faz reconhecível, é o mesmo Jesus, é o crucificado, é seu corpo chagado.
Trata-se de crer no Crucificado. Suas feridas são inseparáveis da morte e da
entrega a uma causa: o Reino. Não é a passagem a uma condição superior à do ser
humano, mas a mesma condição humana levada a seu cume, assumindo sua história
anterior.
As chagas, sinal
de seu amor extremo, evidenciam que é o mesmo que morreu na cruz. Já não há
lugar para o medo da morte. Ninguém poderá tirar de Jesus a verdadeira Vida,
nem tirá-la dos seus discípulos.
A permanência dos
sinais de sua morte indica a permanência de amor; elas são as cicatrizes de um
compromisso com a vida. Além disso, elas garantem a identificação do
Ressuscitado com o Jesus Crucificado.
Concluindo,
podemos dizer que a experiência de Tomé, que é também a nossa, tem um valor
importante para nós, seguidores(as) do Ressuscitado.
Hoje,
ressuscitado, Jesus continua expondo-se, deixando-se tocar sem resistências,
mostrando suas feridas, permitindo que, como Tomé, “coloquemos o dedo na
ferida”. Quê paradoxo! Os sinais da Ressurreição se encontram aí onde antes se
encontravam os sinais de dor e morte. Só quando assumimos esta realidade,
poderemos testemunhar, como os primeiros discípulos, que o “Crucificado
ressuscitou!”
São estas suas
feridas e chagas nas mãos e no lado aberto os sinais que o Ressuscitado nos
mostra para que possamos reconhecer as cicatrizes que também nós carregamos em
nossos corpos. São estes os sinais que Ele nos mostra para que possamos pôr
também nossas mãos nas feridas que continuam abertas em nosso mundo, nas mãos e
lados de tantas irmãs e irmãos, de tantos povos, de nós mesmos. O Ressuscitado
continua carregando todas as chagas e convida-nos a tocá-las, a acariciá-las, a
acolhê-las, a reconciliar-nos com aquelas que ainda não foram integradas e
pacificadas, a empenhar-nos na transformação daquelas que são fruto da
injustiça e do mal.
Páscoa é tocar e
acompanhar Jesus nos chagados da vida.
Páscoa é também
(ao mesmo tempo) sentir nas mãos e nos dedos, no coração e no olhar, o abraço
de amor de todas as pessoas. Não há Páscoa de Jesus sem corpo-a-corpo de
intimidade e proximidade, de homens e mulheres, de crianças e idosos, nos
diversos tipos de encontro e comunhão, não para possuir mas para compartilhar,
não para impor-se, mas para juntos abrir caminhos sempre novos de respeito e
admiração. Assim nos toca Jesus, assim se deixa tocar por nós.
Texto
bíblico: Jo 20,19-31
Na
oração: Trazemos gravadas em nossa geografia corporal
infinitas pequenas mortes e feridas; às vezes tão pequenas que não deixam
cicatrizes visíveis, mas estão aí, cravadas em nosso corpo.
Contemplando as
chagas do Ressuscitado, seremos capazes de reconhecer que fomos criados para
ressuscitar, com as nossas feridas integradas, pacificadas, iluminadas...;
nossa sensibilidade será ativada o suficiente para poder reconhecer esses
mesmos sinais de dor em outros corpos e rostos.
- “Fazer memória”
das cicatrizes na sua história corporal, unindo-as às “feridas do
Ressuscitado”.
Isso já é
ressurreição, plenitude do mistério da comunhão através dos gestos, da
proximidade, do abraço...
A cada abraço
sentido, uma ressurreição também vivida!
*Adroaldo
Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
Fonte:domtotal.com
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