sexta-feira, 17 de maio de 2019

SOBRE BOMBONS E RESISTÊNCIAS

 
O ministro da Educação, Abraham Weintraub, recorreu a caixas de bombom
 para explicar os cortes que seu ministério está fazendo. (Reprodução, Facebook)

A ação do presidente quando o ministro se explicava com bombons é chamado teologicamente de gesto profético, muito pleno de sentido.
Somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos pela angústia; postos em apuros, mas não desesperançados; perseguidos, mas não desamparados; derrubados, mas não aniquilados” (1Cor4,8-9)
“Se o mundo ficar pesado eu vou pedir emprestado a palavra poesia.
Se o mundo emburrecer, eu vou rezar pra chover palavra sabedoria.
Se o mundo andar para trás, vou escrever num cartaz a palavra rebeldia.
Se a gente desanimar, eu vou colher no pomar a palavra teimosia”
(Jonathan Silva)
Se tem uma palavra que no momento atual faz sentido no Brasil é “resistência”. Oprimidos de todos os lados, seguimos sem desanimar, apesar de todo vento contrário. Ao mesmo tempo, somos acometidos por um tsunami de imbecilidades e por um furacão de maledicências. Se a imbecilidade e a incompetência nos desanimam deixando-nos desolados, mais desanimador ainda é conviver com a maldade deliberada, programada, arquitetada para extorquir a população e matar as minorias fragilizadas.
Quando a gente pensa que já viu toda bobagem e que o limite da burrice foi atingido, notamos que ainda tem muito buraco para despencar e que o abismo é bem mais profundo que o imaginado. Desce sobre as pessoas de boa vontade e minimamente esclarecidas uma onda de desespero, uma nuvem negra anunciando novas tempestades com promessas de estragos e turbulências ainda maiores que as primeiras tormentas já provocaram.
Essa sensação de desânimo e de desespero só tem contraponto na decisão firme e deliberada de resistir, mesmo quando tudo nos manda desanimar. É isto que tenho experimentado nos últimos dias: uma obrigação ingente de teimar contra essa avalanche de destruição, qual planta agarrada na beira do rio, cujas águas poderosas abalam suas raízes.
A gota d’água para minha decisão irresoluta de resistência foi o vídeo dos bombons, em que o tal ministro da educação, conhecido como economista e não como educador, tenta explicar o corte de 35% nos investimentos em educação e justificá-lo por meio de uma matemática esquizofrênica, tão esquizofrênica quanto tudo que esse governo faz.
Tendo cem bombons sobre a mesa, o ministro tenta nos ensinar porcentagem. Separa três bombons e meio e afirma que 35% são apenas três e meio em cem; que o corte é pequeno, que não vai fazer falta. Argumenta que o que eles estão fazendo com tal corte é apenas adiar os investimentos para, depois de setembro (ou seja, depois da possível aprovação da chamada reforma da Previdência), liberar novamente as verbas.
Enquanto o ministro mostra sua incompetência matemática errando na porcentagem, o presidente da república, sentado ao seu lado, simplesmente come à vista de todos os tais bombons que deveriam – na verborreia do ministro da educação – serem reservados para outro momento. Uma cena patética, deprimente, que mostra bem com que tipo de elite estamos lidando. Quem faz cortes na educação mostra claramente sua máxima ignorância e sua mínima sensibilidade ao humano. Faltou ao senhor ministro, quando criança, o sincero desejo de saber como se faz para calcular por cento de vinte, diria meu sobrinho de sete anos quando indagado sobre o desejo de passar do ensino infantil para o fundamental. Na sua visão de menino, a escola iria ensiná-lo a fazer porcentagem. Parece que o tal economista que ocupa o cargo de ministro da educação faltou a essas aulas.
Quando vi o vídeo, fiquei tão estarrecida que não soube dizer o que mais me chocava: o erro do governo de aprovar cortes na educação, o erro matemático dos 35% do ministro, o erro de estratégia do governo ao atrelar os rumos da educação à chantagem barata da aprovação da reforma, ou o erro ético do presidente, que comeu os bombons de todos, enquanto pedia à população abstinência e sacrifício pelo bem do país. A dúvida durou pouco: escolhi o último, o erro moral e ético de comer – simbolicamente – o que é de todos, sem se preocupar com a população sofrida e mais uma vez sacrificada com os cortes.
No campo teológico, classificamos o feito do presidente de gesto profético. Na bíblia esses são bem frequentes. Isaías teria andado nu e descalço durante três dias para simbolizar o que ia acontecer com o Egito e com Cuch (Is 20,3). Jeremias teria enterrado um cinto até que este fosse desenterrado apodrecido para simbolizar a destruição do orgulho de Judá e de Jerusalém (Jr 13,1-11). E Jesus, enfurecido com as autoridades religiosas do Templo, teria feito um chicote de cordas e, com ele, expulsado os vendedores, para simbolizar a inutilidade do local do culto (Jo 2,13-22).
No caso do presidente da república, trata-se de um gesto profético, muito pleno de sentido: as classes dominantes comem sozinhas o que é de todos, os bens públicos (impostos) servem a um grupo privilegiado sem nenhuma preocupação com a repartição equitativa dos mesmos, a grande massa de empobrecidos é sacrificada para manter, ao preço da inanição e da morte, o luxo da classe dominante. Uma profecia involuntária, certamente. Coisa também não estranha à Escritura, presente por exemplo em Jo 11,50-52, quando o Sumo Sacerdote, a respeito de Jesus, afirma – contra si mesmo – que um só deve morrer por todos.
Passado o estarrecimento primeiro causado pelo vídeo, tive duas certezas. A primeira diz respeito à única atitude possível diante de tanto descalabro e acinte: resistir até o sangue, como afirma Hb 12,4. A segunda se refere à importância da teologia na sociedade. Um governo boçal, que se elegeu sobre as bases caducas da teologia da prosperidade e sobre o fundamentalismo bíblico que justifica armar a população e perseguir os opositores, não teria a menor chance se nossa gente fosse minimamente esclarecida teologicamente.
Não é preciso saber matemática para criticar o ministro, nem ser expert em educação para ficar apavorado com os cortes que a afetam, nem ser conhecedor de política para intuir que a reforma da previdência não presta, pois precisa de chantagem para se sustentar. Para tal, basta apenas ter um pouco de sensibilidade ética, alguma noção de moral cristã ou algum senso de humanidade, coisa que uma boa teologia não deixa escapar.
Meu desejo é que todos aprendam nas escolas como se faz por cento de vinte, ou seja, que sejam capazes de conhecer os segredos da matemática, principalmente fazer cálculos de porcentagem. Mas desejo mais ainda que os cristãos aprendam nas comunidades eclesiais e na vida em geral que os bombons são de todos e que o senhor presidente não pode comê-los sozinho à vista de uma multidão de famintos. Numa próxima eleição, quem sabe as Igrejas Cristãs errarão menos? Uma boa teologia teria aniquilado na pré-candidatura o nome daquele que disse publicamente que bandido bom é bandido morto e que iria governar para maiorias, a desprezo das minorias. Pois bem: ele cumpre o prometido!
Enquanto a gente sofre as auguras desses que agem com mau-caratismo, resistamos até o fim na esperança de dias melhores. Lembremo-nos do apóstolo dos gentios: “Somos afligidos de todos os lados, mas não vencidos pela angústia; postos em apuros, mas não desesperançados; perseguidos, mas não desamparados; derrubados, mas não aniquilados” (1Cor4,8-9). Sigamos firmes. Somos brasileiros: nosso nome é resistência!
*Solange Maria do Carmo é Teóloga, doutora pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia FAJE; Professora da PUC Minas e do Instituto Santo Tomás de Aquino ISTA.
Fonte:domtotal.com

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