quarta-feira, 7 de agosto de 2019

A VERDADE VOS LIBERTARÁ

Juiz afirmou que o Poder Judiciário estava 'com gravíssimos problemas 
 de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga'.
 (Bill Oxford/ Unsplash)

'Em um país onde os juízes roubam, os ladrões têm inquestionavelmente o direito de roubar'.

O episódio se passa em uma cidade da Inglaterra. O juiz alegou necessidade de férias e indicou para substituí-lo um cidadão acima de qualquer suspeita chamado Ângelo (= anjo). Contudo, em vez de viajar como prometera, o juiz se disfarçou de monge e se escondeu em uma paróquia da cidade. Ali recebeu penitentes que, ao se confessarem, falaram mal dele a seus ouvidos.

Nesse meio tempo, Ângelo lançou mão de leis que haviam caído em desuso, como a pena de morte. E decidiu aplicá-la a um homem que engravidara a noiva antes do casamento. A irmã do condenado suplicou misericórdia. O juiz, então, propôs a ela uma barganha: indultar o condenado em troca da virgindade dela, o que a moça não aceitou.

Acometido por uma crise de consciência, Ângelo desabafou: “Em um país onde os juízes roubam, os ladrões têm inquestionavelmente o direito de roubar”.

O episódio está descrito por Shakespeare na peça Medida por medida, de 1623. E nos remete a uma declaração da juíza Eliana Calmon, primeira mulher a integrar o Superior Tribunal de Justiça, em setembro de 2011, em conferência na Associação Paulista de Jornais. Afirmou que o Poder Judiciário estava “com gravíssimos problemas de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga.”

A recente divulgação pelo site Intercept Brasil de conversas entre o então juiz Sergio Moro e a força-tarefa da Lava Jato, capitaneada pelo procurador Deltan Dallagnol, escancararam o confessionário da equipe encarregada de combater a corrupção no Brasil com lisura e imparcialidade. E o que se constata é estarrecedor: parcialidade, partidarismo, perseguição aos inimigos e proteção aos amigos. Uma escandalosa barganha que, agora, culminou na decisão monocrática do ministro Dias Toffoli de proteger Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República, e seu parceiro Fabrício Queiroz, o que desencadeou uma reação em cascata de anulação de processos em andamento.

O mote de campanha de Jair Bolsonaro foi o versículo 32 do capítulo 8 do Evangelho de João: “A verdade vos libertará”. Até agora nenhum dos desmascarados pelo site Intercept utilizou, em sua defesa, o substantivo “mentira”. Alegam que a ação é criminosa, que as falas estão fora de contexto, que tudo é obra de hackers. É no mínimo curioso que não se investigue o conteúdo das mensagens. Não tem como negar a verdade do que revela o furo jornalístico de Glenn Greenwald, premiado nos EUA por revelar ações clandestinas e ilegais do governo estadunidense. Aqui, ele é ameaçado de prisão pelo governo brasileiro.

Pena nossas autoridades, que se exaltam como exemplos de cristãs, fazerem pescaria de versículos ao ler a Bíblia e ignorarem palavras de Jesus como estas em Lucas 12, 1-3: “Tomem cuidado com o fermento dos fariseus, que é a hipocrisia. Não há nada de escondido que não venha a ser revelado, e nada de oculto que não venha a ser conhecido. Pelo contrário, tudo que vocês tiverem feito na escuridão, será proclamado à luz do dia; e o que tiverem dito em segredo será proclamado sobre os telhados".

Sou filho de juiz. E meu pai repetia em casa que um magistrado só preserva a imparcialidade quando evita duas tentações: as atitudes discricionárias, que dão a ilusão de estar acima das leis; e a vaidade de êxito público, porque os aplausos induzem Têmis, a deusa da Justiça, a arrancar a venda dos olhos para desfrutar melhor das ovações.


Frei Betto
é escritor e religioso dominicano. Recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos e a favor dos movimentos populares. Foi assessor especial da Presidência da República entre 2003 e 2004. É autor de "A Obra do Artista – uma visão holística do Universo", "Um homem chamado Jesus", "Batismo de Sangue", "A Mosca Azul", entre outros. 

Fonte: domtotal,com

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