sexta-feira, 9 de agosto de 2019
DA LITURGIA CELEBRADA AO IMPERATIVO DE UMA ÉTICA SOLIDÁRIA
A Eucaristia nos defrontar com o
Crucificado, com suas opções e caminho solidário, sua fé, seu amor extremado e
com a própria narrativa da sua morte de cruz.
Quando se reuniu à mesa
com os seus discípulos, na iminência de sua morte, Jesus realizou alguns gestos
proféticos que estabeleceram, de antemão, uma narrativa alternativa ao recado
dos romanos que o crucificaram entre dois malfeitores. Estes, pela exemplar
crucificação do Nazareno, proclamavam: "sigam pelo mesmo caminho e vejam o
que acontecerá com vocês", "é isso que dá insurgir-se contra as
autoridades", ou se quisermos, aquilo mesmo que hoje vociferam
determinados grupos e pessoas de nossa sociedade e até das Igrejas (sic!), ao
dizerem que "bandido bom é bandido morto". A narrativa dos romanos
encontrou eco entre os transeuntes, que sobre o Crucificado lançavam as suas
ofensas (cf. Mt 27,39-44). E talvez ainda encontre eco entre nós...
Leia também:
Solidariedade cristã: um convite-imperativo ético para nossos tempos
A solidariedade como testemunho do seguimento de Jesus
Solidariedade e Justiça: o mandamento do Cristo
Mas Jesus deu-nos sua
própria narrativa nos gestos da ceia: lavar os pés, tomar o pão e o cálice –
dar graças – partir o pão e distribuir pão e vinho aos convivas de sua mesa.
Ainda hoje, para aqueles que têm ouvidos para ouvir o inaudito, os gestos da
ceia ressoam a "hermenêutica" de Jesus a respeito de sua morte:
serviço extremado, entrega voluntária, solidária e amorosa capaz de aniquilar o
pecado do mundo e subverter todas as não-verbalizadas, mas reais e duras
narrativas de morte que grassam no mundo, a opressão, a indiferença, o
preconceito, o egoísmo e a maldade. A eucaristia esconde e revela a profecia de
Jesus e de seu evangelho. Paulo a proclamou aos cristãos de Corinto, que
indiferentes aos pobres, celebravam indignamente a ceia do Senhor (cf. 1Cor
11,17-34). Em uma fórmula que se converteu em aclamação memorial do atual rito
romano, o Apóstolo estabeleceu um marco referencial, capaz de anunciar o que
celebramos os cristãos: "Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e
bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha" (1Cor
11,26).
A Eucaristia, como
memorial da extrema solidariedade do Senhor com a humanidade, custodia para a
Igreja aquilo que Andrea Grillo chamou de "reserva de reforma": a
Igreja não apenas reforma os seus ritos, mas confronta-se sempre com a
capacidade renovadora que eles, por sua mediação simbólica, guardam para
ela (cf. Andrea Grillo). É exatamente pelo não dito (verbalmente) que o rito
permanece como fonte inesgotável de renovação. Enquanto a palavra delimita e
restringe, sobretudo quando tenta definir e conceituar, a linguagem simbólica
permanece aberta, em atitude dialogal com a história, com a existência, com as
consciências pessoais, comunitárias e eclesiais. O símbolo, por seu caráter
polissêmico, rompe com qualquer tentativa de domesticação. Ele é um feixe de
sentidos, apontando para diversos significados, em permanente diálogo com a
vida. Por isso ele pode renovar a Igreja, pois a linguagem simbólica dos
sacramentos e da liturgia tem a capacidade de deslocar a Igreja de sua
auto-referencialidade ao mediar a relação entre ela e o mistério.
A Igreja só pode mesmo
anunciar o evangelho da cruz enquanto o recebe do próprio Cristo, como o
revelador do Pai e principal anunciador do Evangelho. Qual uma fonte, não pela
verbalização, mas pela eloquência dos ritos e símbolos, a Eucaristia nos defrontará
sempre com o Crucificado, com suas opções e com o seu caminho solidário, com a
sua fé, com seu amor extremado e com a própria narrativa da sua morte de cruz.
A afirmação de que Cristo é o sacerdote da sua Igreja (cf. Sacrosanctum
Concilum 7), de sua presidência nas ações litúrgicas, comporta também
a certeza de sua presença e ação permanente, pois "quando nos reunimos por
seu amor, como outrora aos discípulos, ele nos revela as Escrituras e parte o
pão para nós" (Oração eucarística VI).
Eucaristias domesticadas
A Eucaristia
infelizmente sofreu gradativa "domesticação" por parte das Igrejas e
das suas teologias. As aspas da "domesticação" se justificam: o augusto
sacramentofoi originalmente um rito doméstico, nesse contexto instituído
por Jesus e celebrado pelos discípulos distante da instituição do templo, nas
casas, em ambientes familiares, hospitaleiros e em contexto de perseguição. Mas
quando o imperador romano tornou a Igreja religião oficial do império, e o rito
migrou das Domus Ecclesiae para as Basílicas, o delicado
dinamismo histórico da ruptura-continuidade da economia veterotestamentária foi
sofrendo, pouco a pouco, um desequilíbrio.
A ruptura foi sendo
esquecida, fortalecendo apenas a continuidade da velha economia. Assim, o rito
foi enclausurado nos espaços dos edifícios: ao santo dos santos do Templo
passamos ao santuário ou presbitério – penetrável somente pelos ministros
ordenados; da arca da Aliança passamos ao Sacrário – com direito aos dois
querubins!; o pão partilhado foi substituído pelas hóstias – “pequenos
inteiros”, por causa de uma teologia eucarística escrupulosa e metafísica; as
mulheres, os homens leigos do lado de lá da mesa da comunhão – pátio dos homens
e das mulheres; enquanto o altar se transformou em ara sacrificial, deixando de
ser a mesa da refeição, a mesa do Senhor! Restou apenas o rico vocábulo circunstantes na
prece eucarística I e IV, para o incômodo testemunho de um tempo em que o povo
sacerdotal circundava o altar.
Os pobres, mendigos,
bêbados e crianças – todos os incômodos – ficam na porta, do lado de fora,
no adro – novo soreg (o pátio do templo,
limite de onde os doentes, impuros e pagãos podiam ficar) dos atuais
excluídos... Essa "domesticação" do rito da eucaristia – aqui no
sentido de adestramento, significou o esvaziamento da profecia, daquela ceia
celebrada por um perseguido, em vias de uma morte exemplar perpetrada pelo
império, mas afirmada como solidária no pão partido e no lava-pés.
À "nova"
prática litúrgica (aspas propositais), correspondeu uma teologia eucarística
distante do evangelho e do Novo Testamento e mais afeita à filosofia grega,
metafísica, dualista, moralista, racionalista e individualista. Uma liturgia
muito lida e pouco celebrada, metaforizada e amedrontada dentro de limites
comportados sem qualquer referência ao Reino, ao evangelho e ao "grito
lancinante do Cordeiro" (Adélia Prado, no poema Missa das 10).
Ao povo essa teologia sugeriu mais o temor que a misericórdia, a cerimônia que
a celebração, a disciplina do preceito que adesão da fé, a recepção dos
sacramentos que a participação, o mérito que a graça da salvação, a devoção que
a teologia, a adoração às espécies que a refeição partilhada, o sacrifício para
aplacar a ira de um Deus irado que a oferenda de amor, o dolorismo da tortura e
do sangue que a ressurreição, o poder que o serviço...
Seria necessário, no
longo percurso histórico da Igreja, uma corajosa reforma como a desencadeada
pelo Concílio, para fazer jorrar novamente a fonte renovadora da liturgia. A
partir de uma linguagem libertada dos estreitamentos dogmáticos e juridicistas,
a linguagem aberta da celebração, do rito e do símbolo, abriu-se caminho para
ver de novo a liturgia como fonte e cume (cf. Sacrosanctum Concilium 10).
Somente quando a liturgia pode de novo ser reconhecida como theologia
prima, permitindo que a lex orandi volte a determinar
a lex credendi, é que poderemos alcançar uma lex
agendi concorde com a celebração.
Da lex
orandi à lex agendi
Não é costume olhar a
eucaristia como ponto de partida para uma ética solidária. Quando o fazemos, a
relação nasce de um raciocínio moralista e acusatório, perpetuando uma
inconveniente inversão axiomática do adágio lex orandi – lex credendi.
Ou seja, pode-se fazer um discurso validamente moral, usando a celebração como
justificativa ou cabide de preceitos. Mas é necessário afirmar a fonte: é a
oração da Igreja (liturgia) que determina a fé e não o contrário! A inversão
nos aproxima de uma reedição de duas antigas heresias, o gnosticismo e o
pelagianismo, denunciados pelo papa Francisco. Tais heresias depositam sua
confiança mais em si mesmas, em seus esquemas e raciocínios que na revelação de
Deus, que na graça da salvação que encontramos na liturgia:
O encontro com
Jesus nas Escrituras nos conduz à Eucaristia, onde essa mesma Palavra atinge a
sua máxima eficácia, porque é presença real daquele que é a Palavra viva. Lá o
único absoluto porque é o próprio Cristo que se oferece. E, quando o recebemos
na comunhão, renovamos a nossa aliança com Ele e consentimos-lhe que realize
cada vez mais a sua obra transformadora (Papa Francisco, Gaudete e
exsultate).
O rito comporta uma
dimensão ética, naquele sentido mesmo da sua etimologia: ética como casa em
permanente acabamento e construção, como abrigo existencial que nasce da
relação com o mundo e com os outros, e sempre em obediência à uma referência
maior (logos). Em relação à Eucaristia, uma verdadeira ética solidária nasce
organicamente e naturalmente de uma experiência celebrativa de encontro com o
Senhor solidário da cruz e com os irmãos, sobretudo os crucificados da
história, nos quais ele mesmo prolonga seu sofrimento (cf. Mt 25,35-36; Cl
1,24). Supõe um sair de si mesmo, uma abertura à novidade do evangelho e da fé,
um desejo de amar concretamente por experimentar-se amado por Aquele que deu
sua vida na cruz, no apelo do pão rasgado e dos pés lavados. Ter parte com
Jesus (participar, comungar), segundo a imagem da eucaristia joanina do
lava-pés, requer duplo movimento: deixar-se amar por ele (cf. Jo 13,6-8) e
imitar o seu amor solidário (cf. Jo 13,12-15). Não se trata de um voluntarismo
narcisista, mas de uma relação com o iniciador e consumador da fé (cf. Hb
12,2), o Outro que me dispõe aos outros. Essa convergência eu-Outro-outros, se
principia na celebração da Igreja, onde a mediação simbólico-ritual de Cristo
filtra nossa relação com o mundo, com os irmãos e com Deus.
Qual liturgia?
O proclamado nexo entre
liturgia e renovação eclesial proclamado pelo papa João Paulo II (cf. Vincesimus
quintus annus), aprofunda sua vocação renovadora com a afirmação dos bispos
latino-americanos, para os quais a liturgia é manifestação mais perfeita da
Igreja. Na Conferência de Medellín eles afirmam: “o gesto litúrgico não é
autêntico se não implica um compromisso de caridade, um esforço sempre renovado
por ter os sentimentos de Cristo Jesus, e para uma contínua conversão”. A
liturgia estrutura as feições e os sentimentos do Filho de Deus em cada fiel. É
preciso, contudo, advertir que infelizmente ainda acontece liturgias
indiferentes, seguindo o exemplo negativo dos cristãos de Corinto, revelando
também uma surdez ao evangelho latente nos ritos. Para tais celebrações pesará
a acusação do apóstolo: o que vocês estão fazendo não é celebrar a ceia do
Senhor (cf. 1Cor 11,21), ou ainda a denúncia do salmista: “mas o homem no seu
luxo não entende, é semelhante ao animal mudo” [Sl 49(48),13].
A Igreja, para se
renovar, também no sentido de uma ética solidária que nasça da eucaristia,
precisará refazer o seu agir celebrativo, segundo uma teologia eucarística que
se reconcilie com o rito, com o mistério, com o não dito, conforme o caminho
aberto pela reforma litúrgica seguida ao Vaticano II: "A Sacrosanctum
Concilium nos pede para atentarmos ao ‘não verbal’, como um conjunto
de linguagens através das quais amadurecemos uma inteligência mais profunda do
mistério de Deus, que se revelou em Cristo e que é acessível a nós pelo dom do
Espírito Santo” (Andrea Grillo). Tal possibilidade deverá nascer da coragem de
devolver aos ritos seu caráter verdadeiramente doméstico, hospitaleiro e
distanciado daqueles esquemas que reforçam uma piedade eucarística pouco
comprometida com as dores do mundo e voltada para a afirmação de uma Igreja
triunfante e cheia de si. A porta entreaberta pelo Concílio Vaticano II e pela
posterior reforma da liturgia que principiou também a reforma da Igreja, não
pode mais se fechar, nem ficar emperrada pela inércia dos nossos medos e
conveniências. O evangelho nos chama para mais e a tarefa da recepção conciliar
nos convoca para compreender a direção profética e da ética solidária da
liturgia.
Referências:
CELAM. Conclusões
da Conferencia de Medellín – 1968: Trinta anos depois, Medellín é ainda
atual?, 9.II,3. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 135.
DE SIMONE, Leo. Liturgia
secondo Gesù: originalità e specificità del culto Cristiano per il retorno
a uma liturgia più evangelica. Firenze: Edizioni Feeria, 2003.
FRANCISCO, PP. Exortação
apostólica Gaudete e exsultate: sobre o chamado à santidade no mundo atual.
São Paulo: Paulus, 2018, p. 23-35.
GRILLO, Andrea. Oltre
Pio V: la riforma liturgica nel conflitto di interpretazioni. Brescia:
Queriniana, 2007, p. 86-87.
GRILLO, Andrea. Os ditos
e os não ditos da Sacrosanctum Concilium. Em: IHU, extraído em 06 de
agosto de 2019.
TABORDA,
Francisco. O memorial da Páscoa do Senhor: ensaios
litúrgico-teológicos sobre a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2009, p. 23-53.
VAZ, Henrique C. de
Lima. Escritos de Filosofia II: ética e cultura. São Paulo: Loyola,
1993, p. 12-13.
*Padre Danilo é
presbítero do clero da Arquidiocese de Belo Horizonte. Formado em Liturgia pelo
Pontifício Instituto Litúrgico, Santo Anselmo, em Roma. Professor de Liturgia
na faculdade de teologia da PUC Minas e membro da Comissão Episcopal para a
Pastoral Litúrgica da CNBB e do Regional Leste II. Membro da Celebra, Rede de
Animação Litúrgica e Pároco da Paróquia de Santana, em Belo Horizonte.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário