O EGO PERDIDO NOS CELEIROS: REFLEXÃO SOBRE O EVANGELHO DO 18° DOMINGO DO TEMPO COMUM - LC 12,13-21.
O "eu ensimesmado" tende a ser
depredador e exigente; quer toda
a
realidade a seu serviço. (Kelly Sikkema/ Unsplash)
“Atenção! Tomai
cuidado com todo tipo de ganância” Lc 12,15).
No caminho para
Jerusalém, por entre incidentes, encontros e palavras que aquecem a viagem, o
evangelista Lucas aproveita dos diferentes episódios para nos revelar como
Jesus vai formando seus (suas) discípulos(as) no verdadeiro seguimento. No 17º
Domingo do Tempo Comum, aprendemos a orar com Jesus; no domingo seguinte,
seremos motivados a alimentar uma atitude de vigilância frente às
responsabilidades que nos são confiadas; neste domingo, o evangelho ensina a
nos preservar das falsas seguranças, que consistem em acumular bens materiais
para si mesmo, em vez de compartilhá-los com os outros.
A questão que nos é
colocada é a seguinte: queremos nos tornar ricos de celeiros ou de coração?
O relato tem duas
partes: na primeira, Jesus se nega a ser árbitro em um conflito de herança; na
segunda, Ele nos adverte do risco de centrar nossa vida em buscar segurança nos
bens terrenos, distanciando-nos do verdadeiro sentido de nossa existência.
Expandir a verdadeira
Vida não depende de ter mais ou menos, mas de ser.
Se o primeiro objetivo
de todo ser humano é ativar ao máximo sua humanidade e o evangelho nos diz que
ter mais não nos faz mais humanos, a conclusão é muito simples: a posse de bens
de qualquer tipo, não pode ser o objetivo último de nenhum ser humano. A
armadilha de nossa sociedade de consumo está nisso: quanto maior capacidade de
satisfazer necessidades nós temos, maior número de novas necessidades
despertamos; com isso, não há possibilidade alguma de marcar um limite. Já os
antigos santos padres diziam que o objetivo da vida não é aumentar as
necessidades, mas fazer com que essas diminuam cada dia que passa. Esse seria o
sentido inspirador da vida, ou seja, vida des-centrada, oblativa, aberta...
É muito difícil manter
um equilíbrio nesta matéria. Não há nada de mal buscar nível melhor de vida.
Deus nos dotou de inteligência para que sejamos previsores. Prever o futuro é
uma das qualidades próprias do ser humano. Jesus não está criticando a
previsão, nem o empenho por uma vida mais digna. Critica, sim, que façamos isso
de uma maneira egoísta, afastando-nos de nossa verdadeira meta como seres
humanos.
Alimentar necessidades é estar centrado em si mesmo, nutrindo o próprio “ego”.
A parábola deste domingo
revela que a cobiça nos incapacita para viver uma vida mais humana.
Cobiçar é desejar com ânsia aquilo que dá sensação de segurança ao nosso “ego”.
O rico da parábola não
se dá conta de que vive fechado em si mesmo, prisioneiro de uma lógica que o
desumaniza, esvaziando-o de toda dignidade. Só vive para acumular, armazenar e
aumentar seu bem-estar material. Só se preocupa em encher seus celeiros e
dedicar-se à boa vida; não está no seu horizonte que os outros também precisam
se alimentar. Só vive para alimentar seu instinto de posse: “meus celeiros”,
“meu trigo”, “meus bens”. Não percebe que seu “ego” apodrece em meio aos vastos
celeiros.
O homem insensato do
evangelho vive para “inflar seu ego”. Contudo, o ego não é o seu verdadeiro
“eu”, não é ele. É uma falsa imagem de si mesmo. É a ilusão de que ele é um
indivíduo separado, independente, isolado e autônomo. Seja qual for a imagem
que cada um tem de si, todos, efetivamente, fazem parte de um universo imenso,
em que tudo é interdependente e tudo está intimamente ligado entre si. Todas as
divisões, conflitos e rivalidades entres os seres humanos nascem da ilusão de
um “ego” que se sente separado e independente dos outros e da natureza.
O “eu ensimesmado” tende
a ser depredador e exigente; quer toda a realidade a seu serviço. Então, tudo
fica desfocado, tudo se desvia, tudo se perverte, porque falta aquela atitude
“reverente”, ou seja, viver na alteridade diante do Deus da Vida, das suas
criaturas e diante dos outros...
O “ego inflado” se
transforma em centro autônomo: fundamento, farol e vigia de toda a realidade.
Com isso, o ser humano perde a dimensão de ser criatura. A “dependência” para
com o Criador é sentida como ameaça à capacidade de decisão sobre a própria
vida.
O ego não tem
consistência própria: é uma construção mental e uma identidade transitória e,
portanto, parasitária. Para subsistir – para ter uma sensação de existir -,
necessita aferrar-se a qualquer “objeto” que o alimente: tudo o que seja ter,
poder ou aparentar. Vive para ter e acumular, para conseguir poder e impor-se,
para figurar e destacar.
Em tudo isso acredita encontrar segurança, estabilidade e, em definitiva,
consistência.
Quando nos sentimos
genuinamente movidos por sentimentos de compaixão para com as pessoas
necessitadas, quando ativamos o espírito solidário, quando compartilhamos
agradecidamente tudo o que somos e temos, então é o nosso “verdadeiro eu” que
está se manifestando. Quando reconhecemos um momento de honestidade e
sinceridade no nosso desejo de conhecer a verdade acerca de nós mesmos ou do
sentido de nossa vida, esse é o nosso verdadeiro eu. Nos momentos em que agimos
com uma coragem e valentia inexplicáveis e fora do normal, isso também brota de
um impulso que provém das profundezas do nosso próprio ser.
Quando começamos a
sentir uma grande gratidão pelos inúmeros dons que a vida nos oferece, podemos
ter a certeza de que isso não provém do nosso ego. O ego é completamente
incapaz de sentir gratidão. Sentir uma gratidão imensa por todos os dons e
graças que recebemos é um sentimento que brota do mais profundo do nosso
coração.
Se, alguma vez, já
experimentamos a alegria tranquila de deixar de lado nosso ego, fazendo alguma
coisa pelos outros, sem receber qualquer recompensa ou agradecimento, e sem que
ninguém o saiba, então entramos em contato com o nosso “eu mais original e
divino”. E quando nos sentimos invadidos por uma onda de assombro e
deslumbramento, quer dizer que estamos deixando o nosso verdadeiro eu se
expandir.
No centro da mensagem de
Jesus encontramos a revelação de Deus como Pai e a proclamação da igualdade e
da fraternidade de todos os seres humanos. A criação de uma comunidade onde o
compartilhar substitua a acumulação, e que se apresente como alternativa àquilo
que o mundo propõe, configura-se como uma das propostas mestras na proclamação
do Reino de Deus.
Contra a tendência de
querer apropriar-nos de tudo como busca de segurança e como defesa hostil
diante dos outros, Jesus nos convida a viver a partilha, como abertura aos
outros e como possibilidade para a criação da “nova comunidade”, que se
constitui como alternativa frente às relações interpessoais fundadas na
acumulação e no consumismo.
Na partilha, a primitiva
tendência egoísta e agressiva dá lugar a uma atitude aberta, acolhedora e
benevolente frente ao outro. Além disso, onde há partilha, há superabundância.
Dito positivamente:
trata-se de um convite a ir mais além do ego e descobrir nossa verdadeira
identidade, aquela “identidade compartilhada”, na qual o próprio Jesus se
encontrava.
A verdadeira riqueza é
investir numa única fortuna: a do amor, a do favorecimento da vida, a do
descentramento de si mesmo em favor do serviço ao outro, o das obras em favor
dos mais pobres e desfavorecidos. Isso é “ser rico para Deus”.
Para meditar na
oração:
Não permaneça na
superficialidade do teu ego; desça mais ao fundo de ti mesmo e descobrirás a
harmonia. Teu verdadeiro ser é paz, é mansidão, é bondade. Vai mais além de teu
falso ser!
Empenha-te em deslanchar
teu verdadeiro ser: mais oblativo e solidário.
Dentro de ti está a
plenitude, está a felicidade no viver des-centrado. Descubra-a!
*Adroaldo Palaoro é
padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
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