A INDIFERENÇA CRIA ABISMOS REFLEXÃO SOBRE O EVANGELHO DO 26º DOMINGO DO TEMPO COMUM - LC 16,19-31
Os cristãos devem ser
ilhas de compaixão
num mar de indiferença. (Unsplash)
“E, além disso, há
um grande abismo entre nós”. (Lc 16,26)
O Evangelho deste
domingo volta a tratar do tema das riquezas com a parábola do rico Epulón e o
pobre Lázaro. Uma parábola desconcertante e inquietante porque nos situa frente
a uma cena que sacode o coração, pois concentra, em uma só imagem, a realidade
presente em nosso mundo: o abismo entre ricos e pobres. Existe a injustiça,
existe a humilhação e a indiferença para com os menos favorecidos; existe o
esbanjamento de uns frente à miséria de outros. E isto acontece também entre
nós, comunidades e famílias cristãs.
Há muitos aspectos da
riqueza que podem ser injustos e nocivos; mas nesta parábola Jesus critica a
indiferença do rico diante do sofrimento do pobre que está próximo, à porta.
Jesus nos previne contra essa tendência a evitar que os problemas alheios
perturbem nossa “zona de conforto”.
O pobre necessitado não
é alguém que possamos escolher; ele aparece junto à porta de nossas vidas...
Assim, pois, estamos
diante de um texto duplamente perturbador: ele nos deixa inquietos ante a
humilhante situação inicial do pobre, coberto de chagas e com vontade de
saciar-se das migalhas que caiam da mesa do rico; e diante do destino último do
rico, que gritava para que Lázaro lhe refrescasse a língua porque as chamas o
torturavam.
Se tivéssemos que
escolher uma palavra que fosse a chave de leitura da parábola deste domingo,
essa palavra seria “abismo”. E se pudéssemos nomear a atitude denunciada na
mesma parábola, essa seria “indiferença”.
Experimentamos um grande
pecado de raiz, que a todos nos envenena: a cultura da indiferença. Questões
gerais, comuns a grande número de pessoas, não nos provocam e nem nos movem
para além de nossos umbigos. Também os problemas dos outros não nos dizem
respeito. E se há fome e sofrimento ao nosso redor, isso não nos inquieta. A
maldade, a violência, as mortes, as perseguições e escravidões não nos afetam
mais. E vivemos como se nada disso tivesse relação conosco. Não choramos mais
as dores do mundo que construímos e ao qual pertencemos. E o caos que
enfrentamos em nossa sociedade nos deixa sem horizontes e perspectivas de
futuro. Sentindo que tudo vai muito mal, anestesiamos nossa sensibilidade e
entramos num estado de apatia e indiferença para com o mundo, as coisas e as pessoas.
A indiferença é cruel.
Ela edifica uma barreira instransponível entre grupos, classes sociais,
ideologias, religiões... Tornamo-nos uma ilha sem vida e triste, negamos a
condição criatural de vivermos ao lado dos diferentes, nossos semelhantes. Em
nós, a indiferença é sintoma de desumanização. E essa desumanização é tanto
prejudicial a nós quanto às outras pessoas. Todo mundo perde. Aos poucos, nos
recolhemos em nossos medos, em nossas inseguranças e começamos a acreditar que
os diferentes são nossos inimigos. Da indiferença passamos aos discursos
fascistas, às práticas fundamentalistas, à segregação...
“Os cristãos devem
ser ilhas de compaixão num mar de indiferença”.
O grau de humanidade (ou
de indiferença) de nosso mundo se mede pelo grau de sensibilidade diante da dor
humana. E é a compaixão a melhor expressão dessa sensibilidade e humanidade:
deixar-nos afetar pelo que acontece – ou seja, ter uma sensibilidade limpa,
desbloqueada e vibrante.
Definitivamente, a
compaixão é central para sermos humanos. O sofrimento das vítimas nos
“descentra” e nos faz “descer com paixão” aos seus pés e nos situar ao lado (a
favor) delas. Sempre podemos fazer a “travessia para o outro lado”. Ali é onde
se abrem espaços à compaixão.
Esta compaixão não é
meramente um sentimento privativo, mas reação “apaixonada” diante das
injustiças sangrentas de nosso mundo. Nos sofredores há algo que atrai e
convoca, que nos faz sair de dentro de nós mesmos e nos tornar próximos deles;
aí reside a origem da solidariedade que suscita uma ação eficaz e um
compromisso de vida a favor de quem é vítima de situações injustas.
Não resta dúvida que o
sentimento nuclear do evangelho, o eixo ao redor do qual tudo gira, é a
compaixão. Na sua missão, Jesus sempre se mostrou um homem compassivo, que
revelou um Deus Compaixão e que, como consequência, nos convida a viver essa
mesma atitude: “Sede compassivos comovosso Pai é
compassivo” (Lc 6,36).
Expressão de
fraternidade e vivida como serviço, a compaixão é a capacidade de situar-se no
lugar do outro, sentir e sofrer com ele. É provavelmente o máximo sinal de
maturidade humana e todas as tradições espirituais reconhecem isso. No budismo,
especialmente, se afirma que, enquanto alguém não for capaz de colocar-se no
lugar do outro, não poderá alcançar a iluminação.
Se a compaixão constitui
a coluna central do evangelho, não causa estranheza que as denúncias mais
fortes de Jesus são dirigidas contra a atitude de indiferença. É o que Ele
revela na parábola deste domingo, onde a indiferença é retratada na atitude do
rico epulón, que não causa dano ao pobre Lázaro, mas é incapaz de abrir a porta
de sua casa e deixar-se afetar pela situação miserável dele.
Aqui, a chave de
compreensão da parábola é encontrada na expressão “um grande abismo”. Um
abismo que, não só se faz intransponível depois da morte, mas que foi
alimentado exclusivamente pela indiferença do rico. Não tinha feito mal ao
pobre; simplesmente, não tinha visto aquela pessoa necessitada de suas migalhas
para saciar sua fome. É esse “não ver” que cria um abismo profundo em nossas
relações pessoais, em nossos países e em nosso mundo.
Há uma “massa sobrante”
que se torna “invisível” porque nossa sensibilidade está bloqueada ou
petri-ficada, fechando-nos em um caracol egocêntrico e instalando-nos na
indiferença, que está na origem das injustiças e violências que diariamente
ferem o nosso mundo.
Vivemos tempos de “globalização
da indiferença”, ou seja, a indiferença está se convertendo em um
fenômeno mundial. É uma mancha de óleo que invadiu todos os ambientes, é um som
desagradável que molesta todos os ouvidos, é um comportamento nefasto que se
espalhou como pólvora, é um péssimo modo de proceder que se converteu em
denominador comum de toda a humanidade.
Nós, seguidores(as) de
Jesus, precisamos vigiar se não quisermos cair na tentação da indiferença.
Costumeiramente, tendemos ao conformismo. A cultura da indiferença é
fortalecida toda vez que deixamos de acreditar que a realidade pode e deve ser
diferente. Não podemos nos dar por vencidos acreditando que estamos no fim, que
nossas forças já se esgotaram, que não há mais sentido para lutar.
O primeiro convite que
nos faz a parábola deste domingo é o de abrir a porta do nosso coração ao
outro, porque cada pessoa é um dom, seja ela o nosso vizinho ou o pobre
desconhecido. Sempre é tempo propício para abrir a porta a cada necessitado e
nele reconhecer o rosto de Cristo. Cada um de nós o encontra no próprio caminho.
Cada vida que se cruza conosco é um dom e merece aceitação, cuidado, amor.
Nesse sentido, “amar
é abrir a porta”.
Texto bíblico: Lc 16,19-31
Na oração: É possível superar os tempos sombrios que estamos vivendo,
não nos deixando dominar pela indiferença, alimentando a capacidade de nos
indignar, compadecer e afetar pela situação do outro. Que a dor, a injustiça, a
morte, a fome, a mentira, o futuro não nos seja indiferente.
- Quê lugar ocupa a
“compaixão” em sua vida interior, em seu compromisso diário, no horizonte de
sua vida, nos encontros cotidianos?
*Adroaldo Palaoro é
padre jesuíta e atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
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