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Escravatura é, como intuitivamente se percebe, uma pessoa serobrigada a trabalhar, confinada e sem remuneração. (Pixabay) |
Como
dissemos, a escravatura do passado ainda incomoda o presente. E, oficialmente,
não acabou.
Por José Couto Nogueira*
Ninguém gosta de falar de escravatura, hoje em dia, embora seja
uma prática tão antiga como a humanidade. Há quem pense que é coisa de outras
eras, há quem julgue que o problema está mais ou menos resolvido, e há quem
queira que se façam reparações pelo passado. Mas todos preferem deixar o
assunto desagradável em estado latente.
Escravatura é, como intuitivamente se percebe, uma pessoa ser
obrigada a trabalhar, confinada e sem remuneração. Todas as civilizações que
conhecemos a praticaram, quer arrebanhando prisioneiros de guerra, quer criando
servidão por dívidas e crimes, ou ainda como “produto” comercial.
Para nós, ocidentais, a escravatura está ligada ao racismo,
especificamente em relação aos negros, fortes para o trabalho e
impossibilitados de se revoltar; mas a “instituição”, em termos universais, não
era, nem é, inerentemente racista; é mais xenófoba, digamos, no sentido em que
os outros, mesmo etnicamente iguais, são escravizáveis se for possível
escravizá-los. Do mesmo modo, não está ligada exclusivamente ao trabalho braçal
violento. Em Roma havia escravos pedagogos, que ensinavam os meninos da casa, e
outros com um estatuto quase familiar – mas, sempre, presos a uma servidão que
não podiam contestar e que eventualmente lhes custava violências e a vida.
Na civilização ocidental, os portugueses são geralmente creditados
por ser os maiores escravagistas. Considerando o número de africanos
transportados para as Américas, não contabilizado, mas avaliado, será
porventura verdade. O Infante Dom Henrique, que era sobretudo um comerciante de
visão global, negociava escravos. Mas também é verdade que todos os países
europeus os tinham para as tarefas mais desprezíveis. Nunca foram tantos como
nas Américas ou África, porque a economia europeia não precisava tanto ao
trabalho agrícola intensivo, do tipo que se praticava noutros continentes.
A efeméride que agora se relembra, foi a chegada dos primeiros
“vinte e tal” escravos negros a Point Comfort, na Virgínia, em 1619, trazidos
de Luanda por um corsário inglês. Trezentos e cinquenta escravos tinham sido
embarcados no navio negreiro português São João Baptista, com destino à colônia
espanhola de Vera Cruz. Foi atacado por dois navios corsários, que ficaram com
alguns dos negros. Os barcos ingleses que saquearam o português pertenciam ao
Conde de Warwick, inimigo declarado de católicos e espanhóis, e navegava com a
bandeira holandesa. Portanto, no que toca a responsabilidades, todos são
culpados – menos as vítimas, evidentemente.
Calcula-se que entre 1.618 e 1.620 os portugueses tenham exportado
50 mil escravos, alguns prisioneiros de guerra, outros vendidos pelos seus inimigos.
Porque, convém lembrar, não foram os portugueses que “inventaram” a escravatura
na África; foram os próprios africanos que se escravizaram entre si, nas
constantes guerras tribais. Quando os portugueses chegaram à África
Sub-saariana, há muito que os mouros traficavam negros e inimigos.
Contudo, esta data de 1619 parece que não é correta. O primeiro
escravo chegou Flórida em 1513, levado pelo espanhol Ponce de Leon.
Os colonos estabelecidos nas Américas também escravizaram os
índios naturais, mas com piores resultados porque eram menos resistentes ao
trabalho brutal e preferiam morrer a viver na escravidão. No Brasil, os
portugueses começaram por comprar escravos aos próprios nativos, passando
depois a arrebanhá-los eles próprios, para finalmente se voltarem para a
importação de africanos. Até no Japão compraram aos senhores locais, e no
século 16, havia escravos japoneses e chineses em Lisboa, especialmente
raparigas. Os japoneses, por sua vez, escravizavam os coreanos.
Com a evolução da nossa cultura, a escravatura começou a ser
malvista e acabou por se considerar uma abominação. Nos países europeus foi
abolida gradualmente, num período de poucas décadas. Geralmente havia uma
primeira legislação que tornava livres os filhos de escravos, depois podiam comprar
a sua liberdade, e finalmente tornou-se ilegal. A Grã Bretanha proibiu-a em
1807 no seu território, mas continuou a praticá-la nas colônias até 1843.
Contudo, sentia-se no direito de se apropriar dos navios negreiros árabes,
portugueses e espanhóis, numa mistura de falsa piedade e interesses
estratégicos. Os portugueses proibiram o tráfico em 1781, por decreto de
Pombal, mas não proibiram a escravatura em si, que só terminou efetivamente em
1869.
Nos Estados Unidos a questão era muito mais complicada, uma vez
que a economia dos estados do Sul dependia do trabalho escravo. Só uma guerra
civil violenta levou à abolição efetiva, em 1865.
A ideia vaga que temos é que a escravatura pura e dura – sob
formas mais sofisticadas, já lá vamos – acabou durante o século 19. Como se os
povos deste mundo, ao fim de milênios a escravizarem-se uns aos outros, de
repente, no final de 1900 anos da Era Cristã, abrissem os olhos para a
sacralidade da vida e não cometessem mais tal abominação.
A efeméride de 1619 é uma oportunidade de chamar à consciência uma
prática aberrante, mas não mais do que isso. Multiplicam-se os estudos, ensaios
e teses sobre quando, como e por que se escravizava, e sobre as consequências
sociais e pessoais para as vítimas e os seus descendentes. Os efeitos da
escravatura nos Estados Unidos refletem ainda hoje na educação e nos cuidados
de saúde, segundo análises interessantes, publicadas no The New York
Times.
Uma das autoras, Nikole Hanna-Jones, considera que os ideais
expressos na Constituição de 1787 eram falsos e que os negros norte-americanos
têm lutado em vão para torná-los verdadeiros. Mathew Desmond afirma que “a
brutalidade do capitalismo americano começou na plantação”, e Linda Villarosa
acha que as diferenças étnicas que justificaram a escravatura ainda são um
credo dos médicos de hoje. Jamelle Bouie vê na fundação do país a assunção de
que algumas pessoas merecem ter mais poder do que outras. Estes e outros
ensaios analisam a escravatura com muito mais sofisticação do que foi feito até
hoje e provam que o problema não só foi fundamental no passado como continua a
manifestar-se na herança que deixou para o presente.
Chega-se à constatação assustadora que a época da escravatura não
é corretamente ensinada nas escolas, quer por um preconceito que perdura, quer
pelo incômodo em falar no assunto. Embora esta situação se aplique
especificamente aos Estados Unidos, não há como não admitir que é semelhante ao
resto do mundo. Como dissemos, a escravatura do passado ainda incomoda o
presente. E, oficialmente, não acabou há muito tempo; na década de 1960 a
Arábia Saudita tinha mais de 300 mil escravos. O último país a proibi-la foi a
Mauritânia, em 2007. Isto para não falar da que se continua a praticar, mesmo
onde é ilegal.
Um relatório da Walk Free Foundation, publicado em 2013, mostra
que a Índia tem cerca de 14 milhões de escravos, seguida pela China (2,9
milhões), Paquistão (2,1 milhões), Nigéria, Etiópia, Rússia, Tailândia,
República Democrática do Congo, Mianmar e Bangladesh.
E assim chegamos às formas mais sofisticadas de escravatura que se
praticam hoje. Quando um trabalhador no Vietnã, por exemplo – um país que lutou
uma guerra para criar um regime socialista igualitário – trabalha 12 horas por
dia por um salário de sobrevivência e não tem outras opções, não será um
autêntico escravo?
A eliminação de dois dos requisitos da definição de escravatura, o
confinamento e o não pagamento, é apenas uma maneira hipócrita de ocultar
situações que efetivamente se mantêm sob outra aparência. Para não falar da
forma pura e dura, “tradicional”, que prossegue intacta em muitas regiões do
globo, sem sentir necessidade de se justificar. Enquanto certos países estudam
a escravidão ao nível universitário, como um fato histórico complexo, outros praticam-na
ao nível mais básico, hoje como há milhares de anos.
As datas que representam atrasos e progressos são marcos
históricos afinal sem qualquer significado; os homens continuam a
escravizar-se, praticando uma instituição abominável com a mesma naturalidade
com que formam família, criam negócios ou fazem férias.
Sim, tem de se falar da escravatura. Não só para compreender e
purgar o passado, como também, e sobretudo, para melhorar o futuro. O mais
provável é que nunca acabe, mas pelo menos que tenhamos consciência dos
selvagens que sempre seremos.
Fonte:domtotal.com.br
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