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A medida de Deus é
diferente da usada pelos humanos. Aquele que afirma ser justo
e perfeito cumpridor das
leis, na realidade é o desumano. (Vlad Kutepov/ Unsplash)
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“...porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos” (Lc 18,11)
Na pregação e na prática
de Jesus nós nos deparamos com uma espiritualidade que vem de “baixo”,
que brota do encontro com a fragilidade humana. Ele, conscientemente, se
compromete com os publicanos e pecadores, com os pobres e doentes... porque
sente que eles estão abertos ao amor de Deus.
Os “justos” (praticantes
da lei e observantes das normas religiosas), pelo contrário, vivem centrados em
si mesmos e são aqueles que entram em permanente conflito com Jesus.
Os “fariseus” são os
típicos representantes de uma espiritualidade legalista, distante da realidade
humana. Eles não percebem que, observando detalhadamente todas as leis, não
estão pensando em Deus, mas sim, em si mesmos. No fundo, não tem necessidade de
Deus. Acreditam que cumprindo perfeitamente todos os mandamentos por suas
próprias forças, tem o direito de exigir de Deus uma recompensa. Não buscam
viver o encontro com o Deus de misericórdia; o que mais lhes interessa é o
cumprimento minucioso das normas e ideais que
se impuseram a si mesmos.
De tanto se fixarem
sobres as leis, esquecem o que Deus realmente deseja do ser
humano, tornam-se frios, insensíveis... e assumem o papel de juiz para julgar o
comportamento dos outros. Por isso Jesus os condena duramente, enquanto para os
pecadores e fracos Ele se apresenta manso e misericordioso.
A parábola do “publicano
e do fariseu” é como o espelho interior que nos desvela (tira o véu), nos ajuda
a descobrir e acolher o que somos na realidade.
Os personagens são muito
simples, somente dois, estilizados, quase caricaturados: o “justo” e o
“pecador”. Com os dois personagens e uma eloquente imagem na qual se vê
refletida a atitude de cada um na oração, Jesus consegue nos colocar diante do
espelho de nossa interioridade, desmascarando a estupidez da prepotência e nos
animando a ativar a atitude da humildade, a mais humana das virtudes.
Cada um dos personagens
se retrata a si mesmo em seu modo de orar. Porque, diante de Deus, por um lado,
vê-se com maior claridade o absurdo de querer se colocar acima dos outros, e,
por outro, a humanidade da humildade.
Mas o espelho mostra que
os papéis estão invertidos. Aquele que afirma ser “justo” e perfeito cumpridor
das leis, na realidade é o desumano. E aquele que se reconhece pecador,
prostrando-se ao solo, na realidade é o mais humano. Este, porque “desceu” do
pedestal do ego, encontra a reconciliação.
Segundo Lucas, Jesus
dirige esta parábola a alguns que se apresentavam serem “justos” diante de Deus
e desprezavam os outros. Os dois protagonistas, que “subiram ao templo para
orar”, representam duas atitudes religiosas contrapostas e
irreconciliáveis.
Mas, qual é a atitude
justa e verdadeira diante de Deus? Esta é a pergunta de fundo.
Quando nos vemos
demasiadamente legalistas, demasiadamente perfeitos, exigentes, rígidos,
ansiosos, agressivos, intolerantes..., agiríamos bem perguntando-nos o quanto
do “fariseu” nos habita.
Na parábola acima
mencionada, os dois personagens correspondem a dois aspectos de nossa própria
pessoa. Vive em cada um de nós um eu prepotente, que se considera justo e
rejeita todo o imperfeito; é o eu rígido, fruto da superexigência, que se
identifica com a imagem idealizada de si mesmo e se alimenta do orgulho. Mas
junto a ele, e com freqüência sufocado, vive “outro eu” que teve de esconder-se
porque não se sentiu reconhecido em sua verdade, nem aceito em seus limites.
Somente quando
integrarmos e nos reconciliarmos com os aspectos que tínhamos negado ou até
rejeitado – o publicano - poderemos alcançar a paz e a
harmonia estáveis. Portanto, nosso grande empenho não consiste em sermos
“perfeitos”, mas “completos”. Na medida em que somos mais “completos”, porque
aceitamos de maneira integral toda a nossa verdade, vamos nos tornando mais
compassivos e humanos.
A parábola nos revela
que a reconciliação virá por esse lado. Precisamos abraçar toda a nossa frágil
realidade em toda a sua verdade e, a partir dessa humildade, começar a viver em
gratuidade e em gratidão. Deus tem mais facilidade de entrar em nossa vida pela
porta da fragilidade e da limitação; ao contrário, não encontra acesso à nossa
vida quando estamos petrificados em nosso perfeccionismo e fechados em nossa
soberba.
Será justamente a partir
da consciência de nossa pobreza e de nossa negatividade que poderemos nos abrir
à experiência da gratuidade divina; é quando nos encontramos sem nada que
sentimos mais necessidade de nos abrir para cumular-nos dos dons da graça
divina.
A parábola nos fala da
necessidade de acolher o desprezível que descobrimos em nós, de receber
amorosamente em nossos braços o pobre “publicano interior”, de contemplá-lo com
olhos compassivos e alimentá-lo. Desse modo, iremos reduzindo nosso abismo
interior e avançaremos para a totalidade a que Deus nos chama em Jesus.
Em outras palavras, a
transformação interior só pode acontecer quando tudo quanto está em nós é
referido a Deus, ao Deus que nos ama e nos conduz à verdade de nossa
existência.
Tudo quanto pensamos e
sentimos acontece na presença de Deus, Aquele que nos olha com bondade e
compaixão e que vê até o fundo de nossos pensamentos e sentimentos.
A humildade é o coração
mesmo da mensagem bíblica; ela é a transparente verdade que enobrece e
engrandece, porque dá a exata medida de nossa fraqueza e limitação. Ela é o
segredo da paz interior.
Sabemos que uma das
fontes de angústia e ansiedade é constatar a diferença entre o que pretendemos
ser, o que gostaríamos de ser e o que realmente somos.
“A humildade é a
verdade” (S. Tereza d’Ávila); ser o que se é, nada acrescentar, nada tirar,
aceitar seu húmus, sua condição terrosa, suas grandezas e seus limites;
maravilhar-se de que esta argila infinitamente frágil seja habitada pela santidade
e seja capaz de amar.
“Todo aquele que se
exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado” (Lc. 18,14).
A humildade, portanto,
implica reconciliar-nos com a nossa condição terrena, com o mundo de nossos
instintos e paixões, com o nosso lado sombrio.
Nós temos necessidade de
bastante contato com o chão de nossa existência para que o
salto para Deus possa acontecer. O caminho para Deus passa sempre pela
experiência da própria fraqueza.
Quando não conseguimos
mais nada, quando tudo nos foi retirado das mãos, quando somos forçados a
constatar que fracassamos, aí é também o lugar onde já não nos
resta outra coisa senão entregar-nos nas mãos de Deus, abrir nossas mãos e
apresentá-las vazias a Deus.
A experiência de Deus
nunca é uma recompensa pelo nosso esforço, mas sim, a resposta à nossa própria
indigência. Entregar-nos a Deus é a meta de todo caminho espiritual.
Texto bíblico: Lc 18,9-14
Na oração: Na perspectiva cristã nada se perde; na oração, aprendemos a
acolher e a conviver com os cacos e fragmentos de nossa vida, e a partir daí,
com a graça de Deus, podemos construir algo novo e surpreendente.
- Deixe-se “desvelar”
por Deus: quanto há de “fariseu” em seu coração? Quanto há de “publicano”?
Em quê circunstâncias de
sua vida transparece o “fariseu” ou o “publicano”?
*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e
atua no ministério dos Exercícios Espirituais.
Fonte:domtotal.com
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