O único que
o reconhece Jesus como rei é um condenado à morte,
um maldito, um marginalizado da lei (Pixabay)
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Acabamos por esquecer o que é nuclear em nossa fé cristã: em Jesus, Deus se faz homem, mas homem pobre.
Celebramos neste domingo (24) a festa de Cristo
Rei, cume do ano Litúrgico.
Muitos se sentem incomodados com essa imagem.
Não querem que Cristo seja “rei”, não suportam a imagem de um monarca
governando a partir de cima. De fato, quando o Papa Pio XI (1925) proclamou
esta festa, havia um interesse nada evangélico: a Igreja estava perdendo seu
poder e seu prestígio, acossada pela modernidade. Como pura imitação dos reis
deste mundo, a Igreja desejava reconquistar sua influência, correndo o risco de
utilizar este título para manipular ideias, dominar consciências, alimentar
sentimentos de culpa, impor o servilismo e o medo.
Mas, esta festa de Cristo Rei, pode ser ocasião
propícia para “transgredir” nossa concepção de “rei” e “reinado”, e evitar um
triunfalismo religioso, pura imitação dos reis deste mundo que vivem às custas
de seus súditos.
Jesus, no seu anúncio e vivência, desencadeou um
movimento de Reino, sem tomada de poder, sem palácios e riquezas, sem cetro de
comando, sem instituições militares de domínio, sem meios de imposição
econômica, sem títulos de nobreza. Mas sua visão de Reino não foi acolhida; por
isso foi rejeitado pelos sacerdotes do templo e pelos representantes do poder
do império romano.
Evidentemente se trata de um rei
muito estranho, em discordância total com os reis de então e os de hoje.
É chamativo este rei ser crucificado entre dois
“malfeitores”; não se tratava de criminosos comuns, mas de homens que se haviam
levantando contra o poder de Roma.
Algo havia em Jesus que permitia interpretá-lo
como um perigo para o poder imperial. Um poeta que canta a beleza dos lírios do
campo ou dos pássaros do céu não terminaria sua vida dessa maneira.
A piedade cristã procurou cobrir Jesus de Nazaré
com títulos de glória tão pomposos que quase o sepultou de novo. Ao elevar o
carpinteiro da Galileia até a mais alta dignidade, ao fazê-lo subir até o mais
alto dos céus, ao coroá-lo rei dos reis e senhor dos senhores, quase conseguiu
silenciar por completo o Jesus dos pobres, das multidões famintas, dos
marginalizados, o Jesus rodeado de “más companhias e de pecadores”. Pintaram-no
tão acima no céu e tão cheio da deslumbrante luz divina, que quase não somos
mais capazes de contemplar Jesus percorrendo os caminhos poeirentos da
Galileia, em meio aos mendigos, leprosos, pobres e excluídos, no empenho por
tornar presente o sonho de Deus para este mundo.
Enfim, acabamos por esquecer o que é nuclear em
nossa fé cristã: em Jesus, Deus se faz homem, mas homem pobre; nasce em um
estábulo, não tem onde reclinar a cabeça e morre desnudo numa cruz, o suplício
dos últimos, dos mais pobres daquela sociedade. Jesus sempre viveu voltado para
aqueles que sofriam e necessitavam de ajuda. Não ficou alheio a nenhum
sofrimento. Sua missão era essa: “aliviar o sofrimento humano”. Por isso, se
identificou com todos os pobres e excluídos da história.
A narrativa lucana deste domingo (24) é muito
provocativa: o único que o reconhece Jesus como rei é um condenado à morte, um
maldito, um marginalizado da lei. Este está mais perto do reinado de Deus que
as autoridades religiosas e as demais pessoas. Por isso, Jesus o acolhe como
companheiro inseparável. Juntos morrerão crucificados e juntos entrarão no
Reino de Vida.
Jesus sempre viveu "em más companhias"
e agora morre entre dois malfeitores. Mais uma vez, não assume o papel de juiz
sobre os outros, mas oferece uma nova chance de salvação. O moribundo que dá
vida: presença solidária, vida descentrada que, mesmo em meio ao pior
sofrimento, oferece companhia e consolo a outros sofredores.
Um dos malfeitores, impactado pela serenidade e
testemunho de Jesus “rouba o paraíso”.
Em meio aos escárnios e zombarias, brota do seu
coração uma surpreendente invocação: “Jesus, lembra-te de mim quando entrares
no teu reinado”.
Não se trata de um discípulo ou seguidor de
Jesus. Lucas nos apresenta um malfeitor como admirável exemplo de fé no
Crucificado, e que no último instante de sua vida “roubou” a promessa de vida
que acontece no “hoje”. “Hoje estarás comigo no paraíso”.
À primeira vista parece um paradoxo que dos
lábios de um homem aparentemente derrotado e pratica-mente moribundo, brote uma
palavra de vida, acompanhada de uma certeza que a faz eterna, ou seja, válida
para todo momento, em um presente sempre atual: o “hoje” de Lucas significa
“todo momento”, qualquer instante em que ouvintes ou leitores se abrem à
palavra.
Jesus revela uma promessa que muitas pessoas
precisam ouvir hoje, sobretudo aquelas que carregam cruzes injustas e pesadas,
que vivem realidades atravessadas pela dor, pela solidão, incompreensão ou
pranto.
Desse modo, o evangelista parece estar nos
dizendo: "Essa palavra é válida também para ti, hoje, desde que sejas
capaz de abrir-te a ela e acolhê-la. Também para ti há uma promessa de vida,
que não se acaba na fronteira da morte. Tu também ‘hoje estarás comigo no
paraíso".
Assim compreendida, a narração nos apresenta uma
dupla questão: por um lado, como pôde Jesus pronunciar essa palavra de vida
nessas circunstâncias de morte?; por outro, como podemos acolhê-la, de modo que
sejamos alcançados e vitalizados por ela?
A festa de “Cristo Rei” nos convida também a
tomar a cruz da fidelidade e do serviço solidário, e “descer” com Jesus até à
cruz da humanidade.
A solidariedade com os pobres, a fidelidade à
vida evangélica, nos fazem descer aos porões das violências sociais e
políticas, às realidades inóspitas, aos terrenos contaminados pelo preconceito
e intolerância, às peri-ferias insalubres da miséria das quais todos fogem e
onde os excluídos deste mundo lutam por sobreviver. Ali nos encontramos com o
Crucificado, identificado com os crucifica-dos da história.
Entende-se, assim, o grande “grito” que brotou
das profundezas da dor de Jesus na Cruz e que continua ecoando como clamor
angustiado. Nele se condensam todos os gritos da humanidade sofredora.
Ao ecoar seu grito junto aos crucificados,
provocará grandes novidades. Um grito que não fica no vazio, mas aponta para a
vida.
Texto bíblico: Lc 23,35-43
Na oração: o Crucificado desmascara nossas mentiras e covardias; pendente na
Cruz Seu grito denuncia o aburguesamento de nossa fé, a nossa acomodação ao
bem-estar e nossa indiferença diante daqueles que sofrem. Celebrar a festa do
“Cristo Rei” é aproximar-nos mais dos crucificados da nossa história e
comprometer-nos a tirá-los da Cruz.
Como soarão estas palavras no interior de cada
um de nós: “Hoje estarás comigo no Paraíso”
+ Hoje: porque
as mudanças, a nova criação, a humanidade reconciliada, não tem que esperar
mais; hoje, agora, já...; talvez esse “hoje” não chega é por causa de tantas
pessoas que não decidem, não optam, esperam sentadas...
+ Comigo: promessa de viver em sua companhia e desperta ecos de uma
plenitude que não conseguimos entender.
+ No paraíso:
que não é um mítico Éden, mas lugar de plenitude de vida, onde não haverá mais
pranto, nem dor; realidade já presente onde habitará a justiça e a paz.
- Deixar ressoar esta expressão de Jesus para
construir, hoje, o paraíso em nosso cotidiano.
Que a festa de Cristo Rei seja uma ocasião
privilegiada que nos ajude a desvelar a verdadeira realeza de Jesus, o
carpinteiro de Nazaré, para poder segui-lo de perto, comprometendo-nos com seu
modo de ser e viver.
*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e atua no ministério dos
Exercícios Espirituais.
Fonte: domtotal.com
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