Por que o papa se tornou um
líder que transcende a Igreja Católica?
Que papa
Francisco conquistou o mundo, isso não é novidade para ninguém. Mas, além do
carinho que ele demonstra para com os fiéis, estão as suas atitudes. O ano de
2019 pode ser considerado marcante para o pontificado de Francisco. Uma série
de eventos serviram para concretizar os projetos que o pontífice tinha em mente
quando assumiu o governo da Igreja Católica.
Da política
tolerância zero em relação à pedofilia à defesa da ecologia; do apelo para que
no cristianismo impere a cultura do encontro às várias tentativas de
reaproximação com o mundo islâmico. Só por isso, Francisco merece ganhar capas
dos jornais e destaque nas retrospectivas televisivas.
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O alcance da
sua mensagem ultrapassou os muros da religião. Francisco é um jesuíta que
redimensionou a Igreja Católica: o papa de todos e para todos. Francisco é
ecumênico, interreligioso, “bíblico, lírico e existencial”, roubando as
palavras que Drummond usou para definir Adélia Prado.
Pedofilia
Se nos
recordarmos bem, em fevereiro deste ano, o pontífice convocou a Roma os líderes
das conferências episcopais de todos os continentes para tratar do problema da
pedofilia. Um momento histórico no qual, pela primeira vez, vimos a Igreja
Católica promover uma ação conjunta de prevenção contra esse crime. Apesar de a
maioria dos casos terem sido registrados entre as décadas de 1960 e 1980, a
impunidade em relação aos culpados ainda era uma realidade, mesmo com os
esforços do predecessor, Bento XVI.
Ou seja, quase
30 anos depois, quando as vítimas finalmente tiveram a coragem de denunciar
tais atrocidades, a Igreja passou a encarar o problema de frente. Em grande
parte, graças a Francisco, o pontífice que não se preocupa em preservar a
imagem da instituição. Foi ele quem incentivou, inclusive, que os jornalistas
denunciassem esses crimes.
E não por
acaso, a vaticanista mexicana Valentina Alzraki, considerada “a decana” dos
vaticanistas por causa dos 45 anos de experiência em coberturas papais, foi
convocada por Francisco para dar seu parecer diante de todos os padres, bispos
e cardeais reunidos no evento do início do ano. “Se vocês não decidirem, de
maneira radical, ficar ao lado das crianças, das mães, da sociedade civil,
vocês terão que ter medo de nós. Porque nós, jornalistas, que queremos o bem
comum, seremos os vossos piores inimigos”, disse a comunicadora na ocasião,
quando foi aplaudida de pé pelos colegas presentes.
Quando
pensávamos que Francisco já tinha feito o impossível, ele apresenta outra
novidade: retira o silêncio pontifício, medida canônica que garantia à Igreja
Católica acompanhar as denúncias de abuso sexual envolvendo padres numa espécie
de “segredo de Justiça”. Com a medida, a Justiça civil terá acesso a todos os
autos do processo. Mais um ponto para Francisco. E que ponto!
Ecologia
O papa abraçou
as periferias e chegou à Amazônia. O grito dos missionários e dos
marginalizados daquelas terras ecoou em Roma. O Sínodo dos Bispos para a
Amazônia foi atacado desde a sua preparação, por causa de um jogo de interesses
travestido de “preocupação com questões morais e de disciplina”. Passando por
cima das muitas críticas, Francisco “derrubou do trono os poderosos e exaltou
os humildes”, fazendo assim o seu Magnificat, denunciando que a
criação não pode ser massacrada e violada pelo homem a seu bel prazer.
Francisco disse
que a Igreja não é simplesmente uma “fábrica de documentos”, mas realidade
viva, chamada a transformar, com seu testemunho, toda e qualquer
realidade. Laudato si, a encíclica ecológica publicada
em 2017, transformou-se em vida em outubro. “Chegamos aos diagnósticos”,
declarou o papa no encerramento do sínodo, não sem antes lamentar a
incompreensão diante dos motivos da convocação ao diálogo. O pontífice, no
entanto, dorme com a consciência tranquila, pois é ciente de que fez sua parte,
afinal, propôs-se a ouvir justo no momento em que o diálogo é conturbado e se
turva. E se continuar dependendo dele, a Amazônia não cairá no esquecimento
outra vez. Em 2020, virá uma exortação apostólica, na qual dará seu parecer a
respeito das preocupações apresentadas pelos participantes do evento.
Os
pobres e a Igreja
Quem nunca
ouviu um “por que o Vaticano não vende os seus bens e dá aos mais pobres?”.
Mas, e se for possível algo melhor que isso? Foi o que Francisco fez. O luxuoso
Palazzo Migliori, nas imediações da Praça São Pedro, doado ao Vaticano por uma
família romana na década de 1930, agora pertence aos sem-teto da capital. O
edifício – repleto de afrescos, pisos em mármore e estuques decô – terá como
moradores ilustres “os pobres do papa”, que têm preferência no pontificado do
primeiro jesuíta da Igreja.
Após criar
espaço para oferecer banho e comida aos necessitados – e até enviar um cardeal
para dormir na rua com mendigos –, Francisco, novamente, surpreendeu ao
resgatar os fundamentos cristãos primordiais. Para o argentino, se a Igreja não
estiver ao lado dos últimos, como seu fundador Jesus Cristo, não estará
cumprindo sua missão. Em meio à crise e ao emaranhado de ideologia e
religiosidade de aparência, o líder da Igreja Católica insiste em relembrar aos
cristãos a essência fraterna do cristianismo.
Às portas da
Igreja, não batem apenas os romanos, mas aqueles que estão nos mares arriscando
a vida para ter uma vida digna que lhes foi arrancada por conflitos políticos e
ingerências de potências indiferentes ao sofrimento alheio. Rostos marcados
pela guerra, pela fome e pela exploração. A Europa, que reclama tanto da crise
imigratória, foi a maior responsável por suas causas. E se alguma vez os
líderes do velho mundo se esqueceram disso, o papa está aí para lembrá-los.
Francisco tornou-se um líder de respeito, porque não tem medo de colocar o dedo
na ferida. “Na dúvida, fique do lado dos mais pobres”, disse certa vez dom
Helder Câmara. Porém, no caso de Francisco, não há dúvidas. Em sua visão, se a
Igreja fizer opção contrária, certamente perderá de vez sua credibilidade e
força. Quando se diz que a “Igreja caminha lado a lado com o homem”, quer dizer
que é chamada a lutar pela sua dignidade, em um momento no qual, há seres
humanos “descartáveis”. É o movimento pró-vida na sua integridade levado
adiante por um papa sem medo de se sacrificar pela causa essencial de Cristo.
Francisco
e os muçulmanos pela paz
Ainda falando
sobre “o ano de Francisco”, não podemos deixar de fora a visita aos Emirados
Árabes, realizada também em fevereiro. Em meio aos esforços de aproximação com
o mundo islâmico, nada se compara a essa viagem apostólica. O papa argentino
conseguiu o feito, naquele conglomerado de ilhas, de lançar um apelo de paz
inédito, que contou com o apoio e a adesão dos maiores líderes muçulmanos da
atualidade, entre eles o imã Ahmad al-Tayyeb, autoridade máxima sunita.
Considerada uma “surpresa de Deus” por Francisco, a visita “inaugurou um novo
tempo de relação entre Igreja Católica e o mundo islâmico”, como ele mesmo fez
questão de frisar. Para quem não sabe, o documento será estudado em
universidades de vários países e, por se tratar de um compromisso público, teve
enorme repercussão no mundo árabe muçulmano.
Os
debates do ano: as mulheres e os padres casados
O Sínodo dos
Bispos para a Amazônia foi o primeiro da história a contar com um número
expressivo de mulheres: foram 35. Muitas delas atuaram como auditoras e peritas
da assembleia e puderam reivindicar maior reconhecimento de seu papel na vida
da Igreja. Diversos padres e bispos participantes do evento saíram em defesa
delas, pedindo ao papa para conceder-lhes um ministério especial, de modo que
mulheres possam ter participação mais efetiva nas decisões da instituição.
Francisco não só abriu o debate como prometeu refletir sobre os pedidos.
Outra antiga discussão,
em torno da ordenação de homens casados, também foi enfrentada pelo papa. Um
momento histórico, já que a questão foi engavetada por Paulo VI e João Paulo
II, os quais reafirmaram, através de documentos, a impossibilidade de qualquer
tipo de abertura em relação ao celibato. Atendendo ao apelo dos bispos da
região pan-amazônica, que solicitaram essa licença especial para comunidades
isoladas da Amazônia, Francisco, apesar de ser claramente contra a extinção da
disciplina do celibato na Igreja do Ocidente, deu um passo adiante, abrindo-se
à possibilidade de suprir a carência de padres através da concessão do
ministério a homens casados para atuar no território.
*Mirticeli Dias de Medeiros é
jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade
Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre primordialmente o Vaticano para meios de
comunicação no Brasil e na Itália, sendo uma das poucas jornalistas brasileiras
credenciadas como vaticanista junto à Sala de Imprensa da Santa Sé.
Fonte: domtotal.com
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