JUSTIÇA DO REINO: 'A MAIS SUBLIME BONDADE' REFLEXÃO SOBRE O EVANGELHO DO 6º DOMINGO COMUM - MT 5,17-37
Deus é justo em sua
misericórdia e
misericordioso em
sua justiça(AFP)
Na Bíblia, a justiça é
um dos conceitos centrais, com uma diversidade de sentidos e, por isso mesmo,
difícil de ser definido. Em todo caso, trata-se de um conceito que inclui
“relação”.
Nas “antíteses” –
“ouvistes o que foi dito..., eu, porém, vos digo” – do Sermão da Montanha,
somos colocados diante de cinco casos concretos que tem a ver com a vida
relacional e comunitária: a reconciliação, o olhar puro que não se apossa de
outra pessoa, a veracidade e transparência no falar, a não violência (ou
mansidão bíblica) e o amor gratuito que inclui o “inimigo”.
Em todos eles, podemos
crescer sempre mais, graças à compreensão de quem somos no nível mais profundo;
o “eu, porém, vos digo” de Jesus nos inspira a descer até às raízes de nosso
ser, esvaziando-nos progressivamente de nosso ego e ativando todos os recursos
humanizadores aí presentes.
Na perspectiva
bíblica, “justo” é aquele que, perante Deus e os homens, se “ajusta” ao modo de
agir do mesmo Deus, vivendo e agindo com a marca da bondade.
Visto que justiça
designa o comportamento do ser humano em conformidade com a Vontade de Deus,
pode-se falar de “praticar a justiça”; ou de “cumprir toda a justiça”.
Portanto, a expressão
“justiça de Deus” não tem nenhuma relação com o julgamento de Deus; ela é,
antes de tudo, misericórdia e fidelidade a uma vontade de salvação. O conceito
descreve uma maneira de ser ou de agir de Deus. Deus é justo porque é bondade e
misericórdia. Por isso, também do lado humano a justiça deve significar uma
maneira de prolongar o ser e o agir de Deus.
O problema da relação
entre misericórdia e justiça está em considerar como rivais ou como
incompatíveis esses dois atributos de Deus. É preciso afirmar os dois ao mesmo
tempo e procurar compreender como ambos estão em Deus, sem que um anule o
outro, mas reforçando-se mutuamente. Poderíamos formular assim: Deus é justo em
sua misericórdia e misericordioso em sua justiça. Segundo o Papa Francisco, “a misericórdia
não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos que dizer que a
misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade
de Deus”.
Já no Primeiro
Testamento encontramos afirmações deste tipo: a justiça de Deus é sua
misericórdia. A justiça de Deus coincide com sua misericórdia, sua bondade, sua
santidade. São Paulo, em sua carta aos romanos, afirma que a justiça de Deus se
manifesta na justificação do pecador, de modo que o Deus justo é justificador.
Podemos concluir, pois, que Deus é justo porque quer que todos se salvem. É de
esperar, portanto, que esta vontade de Deus se cumpra. É claro que, diante do
dom da salvação intervém a liberdade humana, porque salvação é acolhida do Deus
que é Amor, e não há amor sem recíproca acolhida.
Jesus veio expandir o
horizonte do comportamento humano; veio nos libertar dos perigos do moralismo e
do legalismo. À luz da justiça de Deus (“força que salva”), Jesus nos apresenta
um modo de proceder mais radical, relendo os mandamentos.
A justiça de Deus não
é poder que se impõe, mas amor aberto e libertador, a partir dos últimos e dos
excluídos da humanidade. A liberdade criadora de Deus, que é amor aos pobres,
se torna princípio de justiça, pois o evangelho chama “justos” precisamente
aqueles que acolhem os exilados, visitam os encarcerados, dá pão a quem tem
fome..., ou seja, àqueles que colocam suas vidas a serviço dos excluídos e
vítimas das instituições sociais e econômicas injustas.
O único fundamento de
qualquer justiça é Cristo. N’Ele nós nos tornamos justiça de Deus (2Cor 5,21).
A partir desta
perspectiva, podemos entender o que Jesus fez em seu tempo com a Lei de Moisés.
Disse que não vinha abolir a lei, mas plenificá-la, porque foi acusado pelas
autoridades religiosas de ser um transgressor das leis. Jesus não foi contra a
Lei, senão que foi mais além da Lei. Quis dizer que toda lei é sempre limitada,
que sempre podemos ir mais além da letra da lei, da pura formulação, até
descobrir o espírito que a inspira. A vontade de Deus está mais além de
qualquer formulação, por isso, não podemos nos limitar ao que está escrito, mas
precisamos sempre dar um passo a mais. Na vivência do amor, que emana do nosso
eu mais profundo, devemos ser sempre mais radicais, não cedendo diante da mínima
manifestação do nosso auto-centramento. Na realidade, quem ama, não precisa de
leis. Segundo S. Paulo, “quem ama, cumpre toda lei”.
Jesus passou de um
cumprimento externo de leis a uma descoberta das exigências de seu próprio ser.
Esta revolução que Ele iniciou, ainda está por ser realizada. Avançamos muito
pouco nessa direção. Todas as indicações do evangelho no sentido de viver no
espírito e não na letra, parece que estão sendo ignoradas. Caímos facilmente no
legalismo, no farisaísmo que se perde em meio a um emaranhado de leis,
desviando-se do essencial, que é a vivência do amor oblativo, gratuito,
expansivo...
“Ouvistes o que foi
dito: não matarás, não cometerás adultério, não jurarás falso; eu, porém, vos
digo...” Não fica abolido o mandamento antigo, mas elevado a níveis
incrivelmente mais profundos. Jesus nos revela que uma atitude interna negativa
é já uma falha contra nosso próprio ser, ainda que não se manifeste numa ação
concreta contra o outro.
Por isso, segundo
Jesus, não basta cumprir a Lei, que ordena “não matarás”. É necessário, além
disso, arrancar de nossa vida a agressividade, o desprezo ao outro, os insultos
ou as vinganças. Aquele que não mata cumpre a Lei, mas, se em seu coração há
resquícios de violências, ali não reina o Deus que busca construir conosco uma
vida mais humana.
Estamos percebendo que
está se estendendo cada vez mais, na sociedade atual, uma linguagem que reflete
o crescimento da agressividade, do preconceito, da intolerância, do fechamento
diante de quem pensa e sente de maneira diferente... Cada vez são mais
frequentes os insultos ofensivos, proferidos só para humilhar, desprezar e
ferir. Palavras nascida da rejeição, do ressentimento, do ódio ou da
vingança...
Por outra parte, as
conversações (sobretudo nas redes sociais) estão tecidas de palavras injustas
que espalham condenações e semeiam suspeitas (fake-news). Palavras ditas sem
amor e sem respeito que envenenam a convivência, causam danos e rompem as
relações entre as pessoas.
Portanto, os
mandamentos continuam tendo sentido. São um mapa de rota, uma proposta, um
chamado para entender a vida. A chave é compreendê-los e vivê-los, não a partir
do medo ao fracasso e ao castigo, mas a partir da disposição de crescer
humanamente na relação com os outros. Quê nos ensinam eles sobre o ser humano,
sobre as relações sociais e sobre nós mesmos? Quê caminho nos propõem para a
vida? Quê horizonte nos mostram?
É necessário dirigir
nosso olhar a Jesus para que, na comunidade cristã, a instituição não seja mais
importante que o Evangelho, nem que a Lei seja mais importante que a
misericórdia. O Plano de Deus e a fé cristã são muito mais que uma adesão
doutrinal, é humanizar-se para amar. “O cristianismo não é uma ética de mínimos
de justiça, mas uma religião de máximos de felicidade. Os mínimos de justiça
lhe parecem irrenunciáveis, mas tais mínimos não esgotam o conteúdo da religião
cristã. Suas propostas não competem com a ética cívica, senão que a
complementam. Enquanto que a universalidade dos mínimos de justiça é uma
universalidade exigível, a dos máximos de felicidade é uma universalidade
ofertável” (Adelia Cortina). A justiça do Evangelho, centrado no amor, é um
plus sobre a justiça humana, centrada na lei.
Texto bíblico: Mt 5,17-37
Na oração: O empenho em favor da justiça não terá fim. Numa
re-leitura da 4ª bem-aventurança podemos afirmar:
“Felizes os famintos
de justiça, que nunca serão saciados”.
- Frente às pessoas
que pensam e sentem de maneira diferente, o que prevalece em você, o peso da
lei ou a força da misericórdia?
- Como você vive o
quinto mandamento -“não matar” - no uso das redes sociais?
*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e
atua no ministério dos exercícios espirituais
Nenhum comentário:
Postar um comentário