sábado, 22 de fevereiro de 2020

VOZES PROFÉTICAS NOS EXTRAMUROS DA IGREJA

Em tempos sombrios, é preciso assumir a subjetividade profética contida em todo homem e toda mulher
Vozes que ressoam em nossa sociedade precisam ser ouvidas como "oráculo do Senhor", pois são verdadeiras profecias que nascem do "chão" da dor e da esperança do nosso povo. (Clem Onojeghuo / Unsplash)

Rodrigo Ferreira da Costa*

O fenômeno profético presente nas Sagradas Escrituras está ligado de modo particular à denúncia (principalmente contra as autoridades políticas e religiosas) e ao anúncio da aliança do Senhor com o seu povo. Os profetas são homens e mulheres da palavra, sua profecia nasce da profunda experiência com Deus e do compromisso ético com a vida do povo que se amadurece a partir do discernimento na história. Assim, podemos dizer que os profetas escutam com os dois ouvidos. Com um escutam Deus e com o outro escutam o povo: seus sonhos, seus clamores, suas alegrias e esperanças. Pois os profetas têm a missão de acordar as consciências para a fidelidade à aliança, anunciar a justiça de Deus, animar a esperança e fortalecer a fé do povo em tempos sombrios. Porém, quando estes homens e mulheres da palavra se calam, quando sua voz já não encontra mais ressonância na vida do povo, quem há de profetizar? Jesus alertava aos seus discípulos acerca da necessidade da profecia: “se os profetas se calam, as pedras hão de falar” (cf. Lc 19, 38-40), ou seja, a Palavra de Deus não pode ser “privatizada ou enclausurada” dentro da Igreja. Por isso, quando os discípulos de Jesus deixam esfriar a inspiração profética e a sua palavra já não tem mais eco no coração do povo, vozes proféticas nos extramuros da Igreja hão de surgir e precisam ser ouvidas.

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Ser profeta, ao contrário do que muitos pensam, não é privilégio apenas de alguns escolhidos. Segundo a tradição bíblica, todo homem é profeta. Moisés disse: “possa todo povo de Deus ser profeta” (Nm 11,29), e Amós vai mais longe ao afirmar que é toda a humanidade: “O eterno Deus falou. Quem não profetizará?” (Am 3,8). Todo espírito humano aberto à inspiração, para escutar/obedecer o dizer de Deus no clamor do rosto, na responsabilidade pelo outro, é profeta. Pois a revelação do Deus dos profetas é essencialmente mandamento, preocupação e responsabilidade por outrem.

O profeta não é o mais santo ou o mais perfeito dentre os demais homens e mulheres. Ele tem consciência de que é uma pessoa comum: “homem de lábios impuros, que vive no meio de um povo de lábios impuros”, mas que está sempre aberto a escutar e obedecer à Palavra de Deus, e por isso não se hesita em responder: “Eis-me aqui!” (Is 6, 8). Sendo uma pessoa “comum” entre outras, o profeta está sempre atento à vida do povo e não se deixa manipular por nenhuma ideologia, nem se cala diante das ameaças, pois tem a consciência de que a sua mensagem é um mandato de Deus. “Não sou profeta, nem filho de profeta; eu sou vaqueiro e cultivador de sicômoros. Mas o Senhor tirou-me de junto do rebanho e o Senhor me disse: ‘Vai, profetiza a meu povo, Israel!’” (Am 7, 14-15). Essa certeza de falar em nome de Deus enche o profeta de coragem, pois a “vida do justo está na mão Deus” (cf. Sb 3,1).

Todo ser humano é chamado a ser profeta, não importa onde e qual a situação em que este se encontra. O que conta em última instância é a capacidade de escutar a inspiração de Deus, seu chamado, que ressoa em nossos ouvidos, nos clamores dos oprimidos ou mesmo nos gemidos inefáveis que atingem o coração de Deus e que devem sensibilizar os seus enviados. Pois o Deus dos profetas tem “entranhas de misericórdia” (Os 11,8), deixa-se afetar pela dor e sofrimento do estrangeiro, da viúva e do órfão. Essa face de Deus que se revela na experiência dos profetas é a de um Deus que se deixa “alterar” pela nossa humanidade, que se preocupa com o sofrimento de seu povo, vê sua miséria, ouve seu grito por justiça, conhece suas angústias e desce para libertá-lo (cf. Ex 3,7-8). Tudo isso faz do profeta um homem da escuta da Palavra de Deus no rosto do outro.

O profeta Amós (8, 11), diante da insensibilidade do povo, profetiza dizendo: “dias hão de vir – oráculo do Senhor Deus – quando hei de mandar à terra uma fome, que não será de pão nem de sede de água, e sim de ouvir a Palavra do Senhor”. Esse tempo parece que já chegou. Vivemos uma profunda fome e sede de profetas que nos falam da Palavra de Deus. Os próprios líderes da Igreja, muitas vezes por medo de perder privilégios ou para manter uma “tradição caduca”, preferem se calar, ou simplesmente rezar, louvar, fechando os ouvidos ao clamor do povo. Assumir, pois, a nossa subjetividade profética, responsável pelo outro, é mais do que uma escolha da qual eu posso ou não aceitar, é uma urgência. Pois a responsabilidade por outrem é, para todo homem e mulher, uma maneira de testemunhar a glória do Infinito, a vocação de ser inspirado. Porque a injustiça, a indiferença e a morte do outro homem torna invisível, des-glorifica, a glória de Deus (cf. Rm 1, 18).

Em tempos sombrios, nos quais as vozes do medo tentam emudecer a nossa voz e o grito do terror faz ensurdecer nossos ouvidos, muitos preferem se “refugiar” dentro dos muros das religiões a serem uma “voz que grita no deserto”. Quando ouvimos os sonhos do Papa Francisco pela Queria Amazônia (cf. Exortação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia), nos sentimos acalentados, porque é uma voz profética que tem surgido no mundo. Mas não podemos esperar somente pelos “profetas dos palácios”, há que se prestar atenção na voz profética dos índios que gritam pelo direito de viver; dos negros que clamam por dignidade; das mulheres que pedem respeito e igualdade; dos homossexuais querem viver como pessoas “normais” na Igreja e na sociedade; dos pobres desempregados, sem comida, moradia e dignidade; da nossa casa comum que geme e clama por uma ecologia integral; dos movimentos populares que resistem em lutar por seus direitos mesmo quando lhes é negado o direito de falar... Essas e outras vozes que ressoam em nossa sociedade precisam ser ouvidas como “oráculo do Senhor”, pois são verdadeiras profecias que nascem do “chão” da dor e da esperança do nosso povo. Oxalá todos os homens e mulheres fossem profetas!

*Pe. Rodrigo Ferreira da Costa, SDN é licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, com especialização em formação para Seminários e Casa de Formação. Atualmente é pároco da Paróquia Santa Luzia – Teresina-Piauí.

Fonte: Domtotal

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