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Estamos
todos obrigados ao retiro compulsório
(Marina De Salis/ Unsplash)
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A vida é cheia de imprevistos. No
âmbito pessoal, fracasso, perda de amizades, doença, morte. No global, eventos
que nenhum analista ou futurólogo prevê, como as quedas do Muro de Berlim e das
Torres Gêmeas, de Nova York. Também ninguém suspeitou de que, em pleno século
XXI, com todos os recursos da ciência, a humanidade seria ameaçada por uma
pandemia.
Quem poderia imaginar que viria da
China, na forma de enfermidade contagiosa, a causa da mais profunda crise do
capitalismo desde 2008? Segundo o Morgan Stanley Composite Index, em poucas
semanas o mercado financeiro viu as ações das bolsas de valores do mundo
perderem 15.5 trilhões de dólares! Mais de 8 vezes o PIB do Brasil em 2019!
Será que algum desses especuladores
e megainvestidores afetados pelo bolso (a parte mais sensível do corpo humano)
ficou pobre? E, no entanto, antes da pandemia quase todos se negavam a
contribuir para medidas de combate à fome e ao aquecimento global.
Isso me faz lembrar o cerco de
Jerusalém pelos romanos, no ano 70. Chegou um momento em que o rico oferecia um
pote de ouro em troca de um pedaço de pão...
O coronavírus nos obriga a nova
espiritualidade e atitude diante da realidade. Não faz distinção de classe,
como a gastroenterite, que mata milhares de crianças desnutridas, nem de
orientação sexual, como a aids, que atingia majoritariamente homossexuais.
Agora somos todos vulneráveis, embora variem as faixas etárias e situações de
risco.
Estamos todos obrigados ao retiro
compulsório. Voltar-se para dentro de casa e de si mesmo. Desapegar-se. Esse
abandono das atividades rotineiras e das agendas programadas pode nos revoltar
ou humanizar. Revoltados ficarão os apegados a certos hábitos que, por ora,
estão proibidos, como ir ao cinema, ao teatro, ao clube. Para idosos, não ter
contato com os netos e manter-se o mais possível dentro de casa.
Viagens aéreas foram reduzidas;
fronteiras nacionais, fechadas; roteiros turísticos, cancelados. Não nos resta
alternativa senão ficar quietos onde estamos. Huit-clos, entre
quatro paredes. Pode ser que descubramos, como Sartre, por que os outros são o
inferno. E pode ser que resgatemos o convívio familiar, o diálogo com os
parentes, o cuidado da casa (tudo deve ser higienizado).
É hora de aprender a trabalhar e
estudar sem nos deslocar do espaço doméstico. Agora, temos mais tempo para ver
filmes na TV, navegar na internet, ler bons livros, pesquisar, meditar e orar.
O vírus iguala todos. Mas não nivela
caráteres. O casal burguês que nunca se deu ao trabalho de entrar na cozinha ou
limpar a casa, agora se vê forçado a arregaçar as mangas ou correr o risco de
ter o vírus trazido por um dos empregados. O relapso não segue instruções das
autoridades sanitárias, e o egoísta compra na farmácia todo o estoque de álcool
gel e máscaras.
Conheço uma jovem que, no prédio em
que mora, se ofereceu aos moradores vulneráveis para ir às compras por eles,
sem nada cobrar. Outra espalhou seu número de telefone para os idosos isolados
terem com quem conversar. Um casal de advogados vai de carro todas as manhãs
buscar a cozinheira na periferia, e levá-la de volta à tarde, para evitar que
use transporte coletivo. Três famílias vizinhas a um hospital decidiram
preparar lanches para enfermeiros e médicos que dobram a carga horária. Na
Itália, vizinhos chegam à janela no fim da tarde e cantam em coro. Igrejas,
mesquitas, sinagogas, abrem suas portas a quem vive na rua e necessita de
cuidados higiênicos. Enfim, são inúmeros os exemplos de generosidade e
solidariedade nesse período em que estamos todos potencialmente ameaçados.
Esses gestos têm sua fonte na
espiritualidade, ainda que sem caráter religioso. Espiritualidade é a
capacidade de se abrir amorosamente ao outro, à natureza e a Deus. E o que ela
melhor nos ensina é o desapego, o segredo da felicidade. Rico não é quem tem
tudo, dizia Buda, e sim quem precisa de pouco.
Fonte: domtotal.com
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