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Delírio de
onipotência é o nome sistêmico do processo de
produção de
diferentes enfermidades (Armin Lotfi/ Unsplash)
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A expressão “delírios de
onipotência” foi bem aplicada na pena sábia e na voz profética de um pregador
espiritual. Configura entendimento que possibilita melhor reconhecer de onde
vêm os prejuízos amargados pela sociedade contemporânea, marcada por um ritmo
insano e por um afã desmedido pelo lucro, alimentando apegos e sede de poder.
Condutas fundamentadas em delírios de onipotência, responsáveis por tantos
descompassos ambientais, sociais e políticos. É compromisso cidadão, que não é
simples, contribuir para a identificação e superação das causas fatídicas desse
colapso humanitário vivido na atualidade, inclusive no âmbito da saúde. Isso
exige a desmontagem da intrincada engenharia que sustenta os delírios de
onipotência. Mas a cultura contemporânea alimenta a ilusão da onipotência. Com
sua dinâmica sedutora, essa ilusão tem força de dominação que configura mentes
e corações, promovendo o obscurantismo, o autoritarismo e a eleição de
relativismos como paradigma comportamental.
Superar os delírios de onipotência é condição inegociável e primordial para que
a sociedade consiga ultrapassar o limiar de seu encarceramento autodestrutivo:
dinâmicas que alimentam violências e perversidades em um mundo que tem tudo
para ser justo e solidário. Desconstruir os delírios de onipotência muito
contribuirá para vencer o adoecimento social, que alcança ápices nas pandemias,
a exemplo da Covid-19, mal que bate à porta de todos, igualmente. Delírio de
onipotência é, pois, o nome sistêmico do processo de produção de diferentes
enfermidades. E quando for superado o auge desta pandemia tão sacrificante, que
exige o isolamento social, lamentavelmente a humanidade ainda não terá
alcançado a imunidade de que necessita, radicada no reverso deste terrível mal:
os delírios de onipotência.
A cura desse mal é um
processo exigente e longo, com novas aprendizagens alicerçadas na
interioridade. Um desafio para a humanidade acostumada com a espetacularização
e o domínio das aparências, com a corrida desarvorada, o tempo todo, para se
sobrepor aos outros, passando por cima de tudo e todos. Um processo que
alimenta a ilusão de se achar “o dono” da palavra, das soluções. Reforça a
pretensão humana de ter sempre razão, em tudo, sustentando o autoengano de se
considerar mais importante que tudo e todos. Prevalece, assim, uma perspectiva
narcísica, doentia. Mede-se o próprio valor pelo que se possui, pela capacidade
de gastar dinheiro, pelo poder para dar ordens aos outros.
Percebe-se assim que as
pandemias são apenas sintomas que causam medo. As doenças são enraizadas nos
delírios de onipotência. Compreende-se, pois, que a esperança da superação da
avassaladora pandemia da Covid-19, que parou o mundo, e de tantas outras,
depende de novos hábitos e práticas organizacionais, com a indispensável
consideração da vida como dom precioso. Obviamente, a referência não é somente
à própria vida, mas o bem maior de todos. Novas lógicas devem inspirar o mundo
do trabalho, qualificar a convivência e promover uma espiritualidade que
resgate o ser humano da pequenez – manifesta nas indiferenças em relação ao
outro, que é irmão, nos partidarismos que levam a escolhas equivocadas e
medíocres, no formalismo asséptico que contamina processos educativos, na
cultura sem força para sustentar valores fundamentais à vida.
A condição cidadã
desgastada se projeta nos delírios de onipotência, traduzidos de muitos modos
nefastos, a exemplo da indiferença paralisante sobre a situação dos que mais
sofrem. Essa indiferença é a que não deixa pessoas se envergonharem, mesmo
convivendo com triste situação: enquanto poucos navegam em mar de dinheiro a
grande maioria vive na miséria e precisa lutar, todos os dias, para sobreviver.
Não menos grave é o gosto pelo autoritarismo, um produto sofisticado e perverso
dos delírios de onipotência, dando espaço a psicopatias na política, na prática
religiosa e nas relações interpessoais.
Os atentados contra a
democracia, valor intocável para se conquistar equilíbrio em uma humanidade
plural, são graves sinais de delírios de onipotência. Combater esses delírios,
vírus mortais, exige humildade – valor espiritual determinante, mas ainda
distante das virtudes do ser humano. Esse valor, para ser alcançado, pede nova
aprendizagem: a espiritualidade. Um novo caminho, desafiador até para religiosos
– mas é preciso trilhá-lo para superar as pandemias geradas e alimentadas por
delírios de onipotência.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo
metropolitano de Belo Horizonte, MG - Brasil. Presidente da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Doutor em Teologia Bíblica pela
Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma (Itália) e mestre em Ciências
Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma (Itália). Membro da
Congregação do Vaticano para a Doutrina da Fé. Dom Walmor presidiu a Comissão
para Doutrina da Fé da CNBB. Também exerceu a presidência do Regional Leste II
da CNBB - Minas Gerais e Espírito Santo. É o Ordinário para fiéis do Rito
Oriental residentes no Brasil e desprovidos de Ordinário do próprio rito. Autor
de numerosos livros e artigos. Membro da Academia Mineira de Letras.
Grão-chanceler da PUC-Minas. Dom Walmor escreve toda sexta-feira para domtotal.
Fonte:domtotal.com
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