sábado, 16 de maio de 2020
A ARTE DE CINZELAR PALAVRAS DE VIDA ATRAVÉS DA CONVERSA
“O Espírito da Verdade...,
vós o conheceis, porque ele permanece junto de vós e está em vós” (15,17)
O
Evangelho deste domingo faz parte de uma longa conversa de Jesus com os seus amigos,
durante a Última Ceia, e que João recolhe nos capítulos 13 a 17.
Era
uma conversa amiga, que ficou na memória do discípulo amado. Jesus,
assim parece, queria prolongar ao máximo esse último encontro, momento de muita
intimidade. Para João, a conversa de Jesus tem uma conotação de profundidade e
trato, de certa familiaridade e ternura.
Nesta
interação Jesus-discípulos, tanto os conteúdos expressos como os aspectos
relacionais ganham uma grande importância: as palavras, os gestos, o olhar, a
maneira de falar, o tom da voz, os silêncios, o contexto onde acontece a
conversação...; tudo isso forma parte da diversidade e riqueza da revelação de
Jesus aos seus mais íntimos. Jesus extrai palavras significativas, previamente cinzeladas e incorporadas
no seu interior, onde elas revelam dinamismo, sentido e alteridade; sua conversa brota de uma vida interior
fecunda e conduz a uma vida comprometida. Trata-se de um verdadeiro “testamento
espiritual”
A conversação constitui, portanto, o núcleo
diferencial de qualidade de trato próximo e fraterno daqueles(as) que, além de
viverem juntos, compartilham a vida com um projeto comum.
No
entanto, há conversa e conversa. Há conversa superficial que gasta palavras à
toa e revela o vazio das pessoas. E há conversa que toca fundo no coração e fica na memória. Todos nós,
de vez em quando, temos esses momentos de convivência amiga, que dilatam o
coração e vão ser força na hora das dificuldades. Ajudam a ter confiança e a
vencer o medo.
Conversar constitui uma das experiências humanas mais antigas e
configuradoras de nosso ser. Ela não se reduz a um mero intercâmbio de
palavras; é um processo essencialmente ativo, inerente à nossa natureza
relacional, cuja finalidade última é viver a experiência do encontro.
Conversar é uma das aprendizagens vitais que não tem data de
vencimento.
A
arte da conversação é um caminho pedagógico, um processo gradual que requer
uma capacidade de escuta, de acolher e deixar-se afetar pelo que o outro é, não só pelo que diz; uma capacidade de olhar com profundidade para
reconhecer uma história santa, um caminho de salvação. É reconhecer no outro o
que há de verdadeiro, bom e belo e descobrir como o dinamismo de Deus atua no coração dele. É
ajudá-lo a descobrir, na trama de sua vida, as motivações profundas que o levam a ser e a
agir de uma maneira muito pessoal.
A conversação é uma experiência profundamente
humana de proximidade, de conhecimento, de inter-câmbio, de ternura..., um encontro entre pessoas que vão compartilhando histórias de vida,
esperanças e frustrações, vontade de construir e sonhar... Na conversação, o que importa é a pessoa do outro e
não os problemas que apresenta...; ela é o lugar privilegiado de encontro e
descoberta misteriosa do Outro (Deus).
“Conversar” e “converter”, etimologicamente, vem da mesma raiz.
Em seu sentido mais radical e profundo “conversar” é “converter-se” ao mistério
do outro, é converter-se à alteridade. A conversação reforça os laços, criando
a comunidade de “amigos no Senhor”.
Sair
dos corredores do próprio claustro interior e de seus mecanismos de defesa para
converter-se em um servidor do outro, com a mediação mais humana, mais sutil,
mais imediata e universal, mais iluminadora e mais reveladora da própria
maturidade: a palavra.
Mesmo
“isolados socialmente” devido à pandemia, a conversação nos liberta da solidão e do
fechamento, fazendo-nos crescer na transparência. As inúmeras possibilidades de
conversar são encontros que nos reconciliam com a vida, nos movem a crescer e a
sair de nosso isolamento. Ela nos permite sentir que formamos parte da vida de
outros e nos ajuda a levantar-nos quando as perdas, os fracassos, as
enfermidades... tornam difícil nosso caminhar.
Para
chegar a conversações mais profundas e íntimas precisamos percorrer o caminho
que se inicia no cotidiano e no aparentemente superficial. Encontrar-nos com os
outros é uma experiência que requer seu tempo, seu espaço, seu ritmo. Nossa
natureza relacional continuamente nos oferece oportunidades para conversar;
depende de nós fazê-las banais ou convertê-las em experiência de vida.
Segundo
Jesus, o protagonista principal da conversação é o Espírito, que gera em nosso interior palavras de vida e criatividade. Numa
conversação profunda deixamos transparecer nossa verdadeira identidade, nossa
verdade original. Mas é o Espírito, que nos habita, Aquele que cava em nós
palavras de vida.
Quando
Ele encontra liberdade para atuar em nós, faz brotar das entranhas das palavras
sua riqueza escondida. Por isso, Ele é o “Espírito da Verdade”: não a verdade racional, dogmática,
doutrinária...
Refere-se
à “verdade profunda” que nos diz que fomos criados para uma Vida plena e para
contribuir a que cada ser humano participe de tal Vida. Ele é a “verdade
íntima” que nos diz que, no mais profundo de nós mesmos, não só pulsa um
coração, mas também um Deus que inspira em todos nós uma maneira original de
ser mais humano. Ele é a “verdade autêntica”: somos filhos(as), irmãos(ãs) e
somos chamados(as) a viver como tais.
Mais
ainda: o “Espírito da verdade” nos convida a viver na “verdade” de Jesus em meio a uma
sociedade onde a mentira é considerada estratégia, a manipulação é vista como
bom negócio, a irresponsabilidade é confundida com a tolerância, a injustiça é
identificada com a ordem estabelecida, a arbitrariedade é propagada como ato de
liberdade, a falta de respeito e a violência verbal como expressões de
sinceridade...
Para
além das imagens e símbolos, é decisivo re-descobrir a presença do Espírito de
Deus que,
dentro de cada um de nós, provoca movimentos, ativa as brasas escondidas no
coração, nos faz fortes, alegres, valentes, apaixonados(as), audazes e
sábios(as). Devemos acolhê-lo com coração simples e confiado, abrindo espaço
para que Ele atue com liberdade, inspirando-nos e fazendo-nos mais criativos. É
Ele que dá sabor e sentido à nossa existência e nos enraíza no modo de ser e de
viver de Jesus.
Conduzidos(as)
pelo Espírito de Jesus, mergulhamos em nosso mundo com os olhos abertos, com os
ouvidos atentos, com o coração sensível para ter acesso à verdade profunda de
toda a realidade. Tudo é perpassado por essa presença alentadora, que “faz novas
todas as coisas”.
Este
Espírito de Vida subsiste em tudo e em todos, embora muitas vezes nos tornamos
traidores(as) do Seu sopro com nossos exclusivismos, condenações e
rejeição do pluralismo fomentado pelo mesmo Espírito.
Nenhuma
espiritualidade e nenhuma igreja tem o monopólio do Espírito de Cristo, que
sopra onde quer, como e quando quer, sem que o controlemos; para o Sopro, não
há barreiras e nem fronteiras.
Todos
e todas estamos em caminho, envolvidos no dinamismo contínuo desse Espírito
Pascal.
Texto bíblico: Jo 14,15-21
Na oração: Pela conversa a pessoa manifesta quem ela é. “Onde
está sua conversa, aí está seu coração”.
- Quais são suas conversas? Elas animam os outros, eleva-os, “aquecem seus
corações?...
- Aguce seus sentidos, abra o coração; há tantos que não podem mais
esperar, pois ansiosos aguardam uma presença que acolha e uma palavra que os
anime.
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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