Dentro de sua
atividade pastoral, com fortes repercussões políticas, Jesus revela‑se como
alguém que vive apaixonadamente a intimidade amorosa com o Pai
Por mais que as escolas espirituais do Ocidente antigo tenham a ensinar, bem como as obras dos místicos cristãos, é no Evangelho que se encontram os fundamentos da mística cristã. A vida de Jesus não busca a reclusão dos monges essênios e nem se pauta pela prática penitencial de João Batista (Mateus 9, 14‑15). Ela se engaja na conflitividade da Palestina de seu tempo, onde não havia distinção entre religião e política. O Filho revela o Pai andando pelos caminhos; seguido por apóstolos, discípulos e mulheres; acolhendo pobres, famintos, doentes e pecadores; desmascarando escribas e fariseus; cercado por multidões; fazendo‑se presença incômoda nas grandes festas em Jerusalém; perseguido e assassinado na cruz como prisioneiro político.
Dentro dessa atividade
pastoral, com fortes repercussões políticas, Jesus revela‑se místico, ou seja,
como alguém que vive apaixonadamente a intimidade amorosa com o Pai, a quem ele
trata por Abba – termo aramaico que exprime muita familiaridade, como o nosso
"papai" (Marcos 14, 36). Seu encontro com o Pai não exige o
afastamento da polis, mas sim abertura de coração à vontade divina.
Fazer a vontade de Deus
é a primeira disposição espiritual do místico. Essa vontade não se descobre
pela correta moralidade ou pela aceitação racional das verdades de fé. Antes de
ser uma conquista ética, a santidade é dom divino. Portanto, nas pegadas de
Jesus, o místico centra sua vida na experiência teologal; sua conduta e crença
derivam dessa relação de amor com Deus. Teresa de Ávila dirá isso com outras
palavras: "A suprema perfeição não consiste, obviamente, em alegrias
interiores, nem em grandes arroubos, visões ou espírito de profecia, mas sim em
adequar nossa vontade à de Deus" (Fundações, 5, 10).
A oração é o hábito que
nutre a mística. Jesus reservava momentos exclusivos de acolhimento do Pai em
seu espírito. "Permanecia retirado em lugares desertos e orava"
(Lucas 5, 16). "Ele foi à montanha para orar e passou a noite inteira em
oração a Deus" (Lucas 6, 12). Para aprofundar a fé, a oração é tão
importante quanto o alimento para nutrir o corpo ou o sono para recuperar
energias. No entanto, até no ativismo das grandes cidades os cristãos encontram
tempo para comer e dormir – se o mesmo não ocorre com a oração não é apenas por
culpa deles. No Ocidente, perderam-se os vínculos que nos ligavam às grandes
tradições espirituais e somos herdeiros de um cristianismo racionalista,
fundado no aprendizado de fórmulas ortodoxas, bem como pragmático, voltado à
promoção de obras ou ao desempenho imediato de tarefas. A dimensão de
gratuidade – essencial em qualquer relação de amor – fica relegada a momentos
formais, rituais, de celebrações, sem dúvida importantes, mas insuficientes
para fazer da disciplina da oração um hábito que permita penetrar os sucessivos
estágios da experiência mística.
Ao contrário de certas
escolas pagãs, a mística cristã não visa a oferecer uma técnica que leve o
crente às núpcias espirituais com a divindade – embora isso possa ocorrer como
dom misericordioso de Deus. Antes, ela busca ensinar‑nos a amar – assim como
Deus ama – as pessoas com as quais convivemos, nossos parentes, a comunidade
com a qual estamos comprometidos em nossa pastoral, o povo a que pertencemos e,
especialmente, os pobres, imagens vivas de Cristo. "Ninguém jamais
contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu
amor em nós é perfeito" (1 João 4, 12).
O amor de Jesus a seu povo
é proporcional à sua fidelidade a Deus. Por isso, ele aceita o cálice: não
retém para si a sua vida, porque entende que o Pai a exige por seu povo (Marcos
14, 36). É aqui que a experiência mística encontra seu ponto de contato com a
atividade política.
Frei Betto
Fonte:domtotal.com
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