ESTAMOS VIVENDO EM UM APOCALIPSE: SERÁ ESTE O FIM DO MUNDO?
Certamente essa pandemia
fez com que nosso planeta,
como o conhecemos, acabe (Unsplash/ Clément
Falize)
A experiência da pandemia pode ser
um 'Dia do Senhor' para as testemunhas de Cristo
Naqueles dias em que
nos encontrávamos pessoalmente, muitas vezes me preocupava com o fato de minha
aula bíblica ser um monólogo pesado em que professava ideias em voz alta e alguns
alunos de graduação me ajudavam com suas afirmações. Havia perguntas espalhadas
por toda parte, mas nunca o suficiente para o meu gosto. Tentava provocá-los a
discordar de Jesus ou de Isaías em voz alta, mas era com muita frequência um
assunto silencioso. "O que tudo isso tem a ver agora?" era uma
pergunta que eu levantaria e tentaria responder sozinho.
A Covid-19 definiu o
plano das aulas profundamente. Agora estamos todos distantes, mas as perguntas
chegam a mim como o jato d'água de um hidrante rompido. A Bíblia e a pergunta
sempre aberta e o que dizem as Sagradas Escrituras está vivo e sinaliza em todo
o mundo caminhos para entender o contexto atual. Uma pergunta que surgiu em
nosso vaivém on-line provavelmente nos levará até o final do semestre: será
este o fim do mundo?
Existem dois conceitos
bíblicos que tentamos abordar no início do curso que nos ajudam a refletir
sobre essa questão. "O Dia do Senhor", descrito pelos profetas Amós e
Joel e o apóstolo Pedro, é um grande dia em que Deus corrige tudo (os últimos
serão os primeiros e os primeiros serão os últimos, a opressão cessa, as
pessoas conseguem o que precisam para viver, o Reino de Deus vem à terra como
no céu) e quase todos os dias, algo assim acontece para qualquer grupo de
pessoas em qualquer lugar do mundo.
O Dia do Senhor é real
e é o que Deus prometeu, mas também é uma metáfora móvel. No livro de Êxodo, os
israelitas que foram levados para a escravidão no Egito entenderam o momento
como um Dia do Senhor. Mais perto do nosso tempo, podemos pensar na Proclamação
de Emancipação, na libertação de Nelson Mandela na África do Sul e, para
muitos, no dia em que o Tribunal Federal efetivamente legalizou o casamento
entre pessoas do mesmo sexo. O Dia do Senhor é feito de justiça. O que o Dia do
Senhor significa para nós depende de nossos valores particulares, nossos
contextos e o que realmente entendemos como justiça.
O outro grande
conceito que a Bíblia nos dá para pensar sobre o fim do mundo é o apocalipse.
Esse é o título grego do livro final no Novo Testamento. Traduz-se por
“revelação”, o que significa simplesmente desvendar, consistindo na divulgação
completa daquilo que já foi escondido. Um apocalipse ocorre quando de repente
somos escolhidos para ser testemunhas do que está acontecendo. Como um aluno
colocou, o apocalipse é aquilo que abre os olhos. Nossa classe sabe que estamos
no meio de um apocalipse. Eles podem sentir isso.
Posso falar um pouco
sobre o meu próprio apocalipse. Para minha vergonha, eu realmente não sabia que
as pessoas que trabalham na Whole Foods, Amazon, Supermercado Kroger,
McDonald's ou Walmart não recebem licença médica por doença. A Covid-19 bate na
minha porta e eu acabo descobrindo isso, e agora estou pensando na injustiça o
tempo todo. De fato, sinto que estou pronto para me revoltar. Um apocalipse
ocorreu.
É o caso do Kroger
perto de onde vivo, em Nashville – suspeito que acontece em outros Krogers em
todo o país. Muitos de nós percebemos o que estava acontecendo com os
funcionários e denunciamos: Rodney McMullen, diretor executivo da cadeia de
supermercados, pelo menos por enquanto, mudou a política para estender o benefício
de licença médica àqueles que pegaram a Covid-19. Este também é um apocalipse.
Nossa conexão como seres humanos foi revelada, resultando em uma prática mais
profunda de solidariedade e amor entre trabalhadores essenciais, clientes e
empregadores. O apocalipse pode fazer isso. Em meio a esse apocalipse, os
relacionamentos que estavam ocultos estão vindo à luz e a ordem das coisas está
mudando. Isso tem que mudar.
Aqueles bilionários
que fomos treinados para ver como filantropos estão começando a se parecer com
o faraó do Egito, e nossos colegas e vizinhos entregando pacotes e encomendas
de grande risco para suas vidas começam a se parecer às multidões diversas que
clamavam a Deus no Êxodo. Continuaremos dando apoio aos faraós enquanto os
trabalhadores essenciais se arriscam? Como é a busca do Reino de Deus e a
justiça de Deus neste apocalipse?
Wendell Berry define o
Reino de Deus como a "Grande Economia". "Eco" vem do
grego oikos, que significa "casa". No Salmo 23, em que
Deus é imaginado como um pastor que cuida das necessidades materiais, o
salmista imagina morar na casa (o oikos) de Deus para sempre. Essa
visão econômica é parte do que Jesus ensina a seus seguidores a orar (“Venha o
teu reino”) e o que Isaías descreve como uma grande festa: uma economia na qual
todos têm o que precisam para viver.
A economia, como está
atualmente organizada, não é uma economia que permite que todos acessem o que
precisam para simplesmente viver, e muito menos prosperar. Mas agora, talvez
mais do que nunca, podemos ver com clareza brutal a dor desse arranjo e o que
isso nos custa. Se substituirmos essa palavra com sentimento autoritário,
economia, pela palavra arranjo – definição básica de uma economia – novas
possibilidades começam a se desenvolver. E, positivamente, vemos que o acordo
que estabelecemos e concordamos não é justo. A maneira como nós, no mundo,
ordenamos nosso sistema de trabalho, assistência médica, moradia e todos os
outros fundamentos da existência humana, corre o risco de entrar em colapso.
Muitos de nós sabemos, em nossos corações, que nosso arranjo econômico não
precisava ser assim.
É o fim do mundo?
Certamente essa pandemia fez com que nosso planeta, como o conhecemos, acabe. Mas
pode haver um mundo melhor nos esperando, um arranjo melhor do que aquele com o
qual nos acostumamos. Talvez haja uma ordem social mais justa, que em alguns
aspectos é nova e em outras bastante antiga, a caminho. Vamos concordar com
isso? Continuaremos permitindo que os faraós bilionários que desejam acumular
mais riqueza ponham em perigo a vida das pessoas que tornam possível a própria
vida? Queremos que as pessoas que preparam, armazenam e entregam nossos
produtos estejam seguras e saudáveis, tenham uma vida e um meio de trabalho
decentes? Se ponderarmos essas questões, começamos a ver que um salário básico
universal, por exemplo, talvez seja melhor entendido como um problema de saúde
pública. Em um apocalipse, todo tipo de realização moral se torna possível.
O povo de Israel e a
Igreja primitiva estavam sintonizados com essas mudanças, ao ver um império
falso após outra queda, e a Bíblia emergia de uma obediência viva, modesta e às
vezes fiel a esse apocalipse no meio deles. Os primeiros cristãos reconheceram quando
os véus estavam sendo levantados e agiram de acordo a isso. Egito, Babilônia e
Roma tentaram monetizar e armar as populações sob seu domínio, e as comunidades
que vieram a ser chamadas ‘povo de Deus’ testemunharam contra sua loucura e
anteciparam seu colapso. Com os pretendentes à autoridade aparecendo diante nas
câmeras tentando afirmar o controle e as boas novas no caminho, vemos esses
dramas em nossos dias também. E, no entanto, nosso colapso cotidiano também é,
às vezes, um apocalipse cotidiano, se o deixarmos acontecer.
Uma economia é um
arranjo, mas, para que não pareça definitivo demais, podemos nos lembrar de que
uma economia também é um acordo. Nos tornamos o que concordamos e somos o que
acreditamos. Gostamos de falar sobre nossos valores como coisas sagradas que
carregamos profundamente em nossos corações, mas nossos valores são apenas o
que fazemos com nossos recursos. As virtudes que acreditamos ter são vividas
apenas no aqui e no agora. O que nós, como sociedade, concordamos e o que percebemos
como necessidades, são evidentes nas políticas que financiamos e votamos em
todas as nossas transações.
Um apocalipse nos dá a
chance de pensar novamente em nossos arranjos sociais e econômicos. Isso nos
permite mudar a mente de tal maneira que nossos comportamentos acompanhem o que
nossos corações acreditam sobre a justiça e o florescimento humano. É isso que
a Bíblia chama de metanoia, uma mudança ou arrependimento. Quando
vemos um povo se arrepender, temos o sinal mais seguro de que um apocalipse, um
final, aconteceu.
O arrependimento é um
desafio para uma economia que somos ensinados a ver como algo invencível, como
um deus. Porém, sem arrependimento nas maneiras pelas quais deixamos os pobres
sofrerem desnecessariamente, nenhuma economia pode ser salva. A Bíblia nos
lembra que algumas economias não valem a pena ser salvas. As estrelas no céu
noturno que muitos de nós estamos vendo, onde estamos pisando pela primeira vez
e o ar fresco que respiramos são apocalípticos no sentido de que tudo isso abre
nossos olhos para o que custa nossa economia atual. Estamos prontos para
repensar nossos acordos? Vivemos tempos claros!
Publicado
Originalmente por America.
Tradução: Ramón Lara
*David Dark ensina na prisão para
mulheres do Tennessee e na Universidade de Belmont em Nashville. Seu trabalho
apareceu na MTV News e é o autor de Life's Too Short @DavidDark
Nenhum comentário:
Postar um comentário