sexta-feira, 8 de maio de 2020

ESTAMOS VIVENDO EM UM APOCALIPSE: SERÁ ESTE O FIM DO MUNDO?


Certamente essa pandemia fez com que nosso planeta,

 como o conhecemos, acabe (Unsplash/ Clément Falize)
A experiência da pandemia pode ser um 'Dia do Senhor' para as testemunhas de Cristo
Naqueles dias em que nos encontrávamos pessoalmente, muitas vezes me preocupava com o fato de minha aula bíblica ser um monólogo pesado em que professava ideias em voz alta e alguns alunos de graduação me ajudavam com suas afirmações. Havia perguntas espalhadas por toda parte, mas nunca o suficiente para o meu gosto. Tentava provocá-los a discordar de Jesus ou de Isaías em voz alta, mas era com muita frequência um assunto silencioso. "O que tudo isso tem a ver agora?" era uma pergunta que eu levantaria e tentaria responder sozinho.
A Covid-19 definiu o plano das aulas profundamente. Agora estamos todos distantes, mas as perguntas chegam a mim como o jato d'água de um hidrante rompido. A Bíblia e a pergunta sempre aberta e o que dizem as Sagradas Escrituras está vivo e sinaliza em todo o mundo caminhos para entender o contexto atual. Uma pergunta que surgiu em nosso vaivém on-line provavelmente nos levará até o final do semestre: será este o fim do mundo?
Existem dois conceitos bíblicos que tentamos abordar no início do curso que nos ajudam a refletir sobre essa questão. "O Dia do Senhor", descrito pelos profetas Amós e Joel e o apóstolo Pedro, é um grande dia em que Deus corrige tudo (os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos, a opressão cessa, as pessoas conseguem o que precisam para viver, o Reino de Deus vem à terra como no céu) e quase todos os dias, algo assim acontece para qualquer grupo de pessoas em qualquer lugar do mundo.
O Dia do Senhor é real e é o que Deus prometeu, mas também é uma metáfora móvel. No livro de Êxodo, os israelitas que foram levados para a escravidão no Egito entenderam o momento como um Dia do Senhor. Mais perto do nosso tempo, podemos pensar na Proclamação de Emancipação, na libertação de Nelson Mandela na África do Sul e, para muitos, no dia em que o Tribunal Federal efetivamente legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O Dia do Senhor é feito de justiça. O que o Dia do Senhor significa para nós depende de nossos valores particulares, nossos contextos e o que realmente entendemos como justiça.
O outro grande conceito que a Bíblia nos dá para pensar sobre o fim do mundo é o apocalipse. Esse é o título grego do livro final no Novo Testamento. Traduz-se por “revelação”, o que significa simplesmente desvendar, consistindo na divulgação completa daquilo que já foi escondido. Um apocalipse ocorre quando de repente somos escolhidos para ser testemunhas do que está acontecendo. Como um aluno colocou, o apocalipse é aquilo que abre os olhos. Nossa classe sabe que estamos no meio de um apocalipse. Eles podem sentir isso.
Posso falar um pouco sobre o meu próprio apocalipse. Para minha vergonha, eu realmente não sabia que as pessoas que trabalham na Whole Foods, Amazon, Supermercado Kroger, McDonald's ou Walmart não recebem licença médica por doença. A Covid-19 bate na minha porta e eu acabo descobrindo isso, e agora estou pensando na injustiça o tempo todo. De fato, sinto que estou pronto para me revoltar. Um apocalipse ocorreu.
É o caso do Kroger perto de onde vivo, em Nashville – suspeito que acontece em outros Krogers em todo o país.  Muitos de nós percebemos o que estava acontecendo com os funcionários e denunciamos: Rodney McMullen, diretor executivo da cadeia de supermercados, pelo menos por enquanto, mudou a política para estender o benefício de licença médica àqueles que pegaram a Covid-19. Este também é um apocalipse. Nossa conexão como seres humanos foi revelada, resultando em uma prática mais profunda de solidariedade e amor entre trabalhadores essenciais, clientes e empregadores. O apocalipse pode fazer isso. Em meio a esse apocalipse, os relacionamentos que estavam ocultos estão vindo à luz e a ordem das coisas está mudando. Isso tem que mudar.
Aqueles bilionários que fomos treinados para ver como filantropos estão começando a se parecer com o faraó do Egito, e nossos colegas e vizinhos entregando pacotes e encomendas de grande risco para suas vidas começam a se parecer às multidões diversas que clamavam a Deus no Êxodo. Continuaremos dando apoio aos faraós enquanto os trabalhadores essenciais se arriscam? Como é a busca do Reino de Deus e a justiça de Deus neste apocalipse?
Wendell Berry define o Reino de Deus como a "Grande Economia". "Eco" vem do grego oikos, que significa "casa". No Salmo 23, em que Deus é imaginado como um pastor que cuida das necessidades materiais, o salmista imagina morar na casa (o oikos) de Deus para sempre. Essa visão econômica é parte do que Jesus ensina a seus seguidores a orar (“Venha o teu reino”) e o que Isaías descreve como uma grande festa: uma economia na qual todos têm o que precisam para viver.
A economia, como está atualmente organizada, não é uma economia que permite que todos acessem o que precisam para simplesmente viver, e muito menos prosperar. Mas agora, talvez mais do que nunca, podemos ver com clareza brutal a dor desse arranjo e o que isso nos custa. Se substituirmos essa palavra com sentimento autoritário, economia, pela palavra arranjo – definição básica de uma economia – novas possibilidades começam a se desenvolver. E, positivamente, vemos que o acordo que estabelecemos e concordamos não é justo. A maneira como nós, no mundo, ordenamos nosso sistema de trabalho, assistência médica, moradia e todos os outros fundamentos da existência humana, corre o risco de entrar em colapso. Muitos de nós sabemos, em nossos corações, que nosso arranjo econômico não precisava ser assim.
É o fim do mundo? Certamente essa pandemia fez com que nosso planeta, como o conhecemos, acabe. Mas pode haver um mundo melhor nos esperando, um arranjo melhor do que aquele com o qual nos acostumamos. Talvez haja uma ordem social mais justa, que em alguns aspectos é nova e em outras bastante antiga, a caminho. Vamos concordar com isso? Continuaremos permitindo que os faraós bilionários que desejam acumular mais riqueza ponham em perigo a vida das pessoas que tornam possível a própria vida? Queremos que as pessoas que preparam, armazenam e entregam nossos produtos estejam seguras e saudáveis, tenham uma vida e um meio de trabalho decentes? Se ponderarmos essas questões, começamos a ver que um salário básico universal, por exemplo, talvez seja melhor entendido como um problema de saúde pública. Em um apocalipse, todo tipo de realização moral se torna possível.
O povo de Israel e a Igreja primitiva estavam sintonizados com essas mudanças, ao ver um império falso após outra queda, e a Bíblia emergia de uma obediência viva, modesta e às vezes fiel a esse apocalipse no meio deles. Os primeiros cristãos reconheceram quando os véus estavam sendo levantados e agiram de acordo a isso. Egito, Babilônia e Roma tentaram monetizar e armar as populações sob seu domínio, e as comunidades que vieram a ser chamadas ‘povo de Deus’ testemunharam contra sua loucura e anteciparam seu colapso. Com os pretendentes à autoridade aparecendo diante nas câmeras tentando afirmar o controle e as boas novas no caminho, vemos esses dramas em nossos dias também. E, no entanto, nosso colapso cotidiano também é, às vezes, um apocalipse cotidiano, se o deixarmos acontecer.
Uma economia é um arranjo, mas, para que não pareça definitivo demais, podemos nos lembrar de que uma economia também é um acordo. Nos tornamos o que concordamos e somos o que acreditamos. Gostamos de falar sobre nossos valores como coisas sagradas que carregamos profundamente em nossos corações, mas nossos valores são apenas o que fazemos com nossos recursos. As virtudes que acreditamos ter são vividas apenas no aqui e no agora. O que nós, como sociedade, concordamos e o que percebemos como necessidades, são evidentes nas políticas que financiamos e votamos em todas as nossas transações.
Um apocalipse nos dá a chance de pensar novamente em nossos arranjos sociais e econômicos. Isso nos permite mudar a mente de tal maneira que nossos comportamentos acompanhem o que nossos corações acreditam sobre a justiça e o florescimento humano. É isso que a Bíblia chama de metanoia, uma mudança ou arrependimento. Quando vemos um povo se arrepender, temos o sinal mais seguro de que um apocalipse, um final, aconteceu.
O arrependimento é um desafio para uma economia que somos ensinados a ver como algo invencível, como um deus. Porém, sem arrependimento nas maneiras pelas quais deixamos os pobres sofrerem desnecessariamente, nenhuma economia pode ser salva. A Bíblia nos lembra que algumas economias não valem a pena ser salvas. As estrelas no céu noturno que muitos de nós estamos vendo, onde estamos pisando pela primeira vez e o ar fresco que respiramos são apocalípticos no sentido de que tudo isso abre nossos olhos para o que custa nossa economia atual. Estamos prontos para repensar nossos acordos? Vivemos tempos claros!
Publicado Originalmente por America.
Tradução: Ramón Lara
*David Dark ensina na prisão para mulheres do Tennessee e na Universidade de Belmont em Nashville. Seu trabalho apareceu na MTV News e é o autor de Life's Too Short @DavidDark

 


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