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Para entender transubstanciação em Tomás de Aquino
há de se compreender
o hilemorfismo aristotélico, o que torna tudo mais complicado (Jacob Bentzinger / Unsplash) |
Termos
como transubstanciação, embora corretos, são comumente mal interpretados
A linguagem é viva. Ao mesmo tempo que ela evolui e se desenvolve,
podemos perceber conceitos que acabam por se cristalizar. Uma vez que aquela
continua se transformando, o uso de alguns destes, ainda que corretos, acabam
por trazer mais incompreensões que esclarecimentos. Na semântica teológica
cristã temos muitos termos que, no seu lugar originário, fazem todo o sentido
para a fé, mas, no uso cotidiano, criam dificuldades para os fiéis não
iniciados teologicamente ou nem mesmo bem iniciados. Alguns desses conceitos
precisam estar sempre sendo ressignificados, porque não há outros que os possam
substituir; outros, no entanto, podem ser substituídos, para que melhor
comuniquem às pessoas de nosso tempo.
Reze conosco em Meu dia com Deus
No caso da Eucaristia, a fim de que nossa relação seja cada vez melhor
experimentada e assimilada – tanto com o sacramento em si, quanto com as
espécies eucaristizadas na piedade devocional –, essa questão da linguagem é
fundamental. Como temos discorrido nas últimas semanas, não é porque
acreditamos na presença real de Cristo na Eucaristia que nossa devoção deva ser
vivida de qualquer modo, pois, muitas vezes, ela acaba por se tornar
idolátrica, como já explicado num dos artigos anteriores. A fé não é um bloco
de verdades que se aceitam: parte de uma experiência que tem sua própria
inteligência (que significa ler desde dentro). As verdades de fé são nascidas
de uma experiência; pararmos no dogma, aceitando-o sem mais, apenas, não
significa que tenhamos feito uma experiência de fé. A fé busca compreender,
como já nos inspirava Santo Anselmo.
Para ler desde dentro, isto é, para perscrutar a inteligência da fé, é
preciso que deixemos de lado as paixões. O ardor da fé não se confunde com
elas, que tendem a nos colocar na defensiva. Digo isso, compreendendo que todas
as vezes em que propomos uma reflexão crítica acerca de temas mais sensíveis à
piedade, a postura reativa é visivelmente de defesa, como se criticar
constituísse, de antemão, ataque à fé ou negação de suas verdades. Nessa linha,
de nada vale, pois, citações dos Catecismos da Igreja, seja o vigente, seja os
de antigamente que foram destinados a seus próprios tempos, se não temos
condições de compreender o que neles se diz, verdadeiramente.
Das muitas reações aos artigos que precederam a este, torna-se bastante
perceptível uma dificuldade de linguagem, que torne mais acessível a
experiência eucarística em sua riqueza, e para além do pietismo subjetivista.
Círculos carismáticos, no catolicismo, tornaram mais presentes, no cotidiano
religioso, o Culto Eucarístico fora da Missa, mais conhecido como Adoração ao
Santíssimo. O costume da adoração ao Santíssimo Sacramento remonta ao século
12, em meio às controvérsias eucarísticas que dominaram esse período. Desde
então, tal culto faz parte da piedade católica, e, na atualidade, com o
movimento carismático, tornou-se muito mais comum e, infelizmente, muitas vezes
exagerado. Sobre a Adoração ao Santíssimo Sacramento voltaremos a falar na
próxima semana.
No entanto, a constatação do papel exercido pelo movimento carismático,
nessa hipervalorização do culto eucarístico fora da missa, fez com que a
linguagem eucarística, tão própria do período escolástico, viesse à tona em
nossos tempos. Em si, isso não é um problema, já que são conceitos que compõem
a semântica teológica. O problema é quando o uso desses conceitos não ajuda
mais numa pertinente compreensão, em nossos tempos, uma vez que a estrutura do
pensamento atual já se distanciou, não apenas temporalmente, mas conceitual e
formalmente da estrutura do período medieval. O exemplo mais clássico disso é o
termo transubstanciação. Conceito eminentemente do período
escolástico, ele se refere à transformação do pão e do vinho, em Corpo e Sangue
de Cristo.
Contudo, só bem entendemos o que realmente significa transubstanciação,
assim expresso, caso conheçamos bem a respeito do hilemorfismo aristotélico
(difícil, não é mesmo?!), tão presente na teologia de Santo Tomás de Aquino,
bem como o conceito de substância usado na antiguidade, que
não tem nada a ver com o sentido que usamos atualmente. A palavra transubstanciação continua
correta, para dizer o que acreditamos se dar, por força do Espírito Santo, com
o pão e o vinho. O uso da palavra em nossos tempos, no entanto, é
antipedagógico, porque não contribui para que compreendamos bem, a partir de
nossa estrutura de pensamento moderno, o que ela realmente significa.
A banalização do termo transubstanciação – que é uma
palavra correta, torno a dizer! – é uma das causas responsáveis por uma
compreensão equivocada da materialidade do pão e do vinho consagrados que, na
perspectiva de muitos, deixa de ser pão e vinho, do ponto de vista material e
químico, e se torna o composto orgânico do corpo e do sangue de Jesus. Ora,
eucaristia, definitivamente, não é isso! A mudança é sacramental e não
material: a hóstia, depois de consagrada, continua sendo hóstia, do ponto de
vista material; e isso não significa dizer que nessa hóstia consagrada, que
continua sendo hóstia, não está realmente presente o Cristo. A confusão é
causada, justamente, porque continuamos a repetir que há uma mudança na
substância, sem que compreendamos o que se queria dizer com este termo há sete
séculos e que, para nós, hoje, é usado do ponto de vista químico e, logo,
material.
No lugar, pois, do termo transubstanciação, é mais pedagógico que
optemos por outros, tais como transformação, mudança.
Além de pedagogicamente melhores, esses termos nos ajudam mais, a melhor
compreender o papel do Espírito Santo, por exemplo, na Eucaristia (como
sacramento!), bem como a importância do pão e do vinho eucaristizados na
celebração da fé. Esses são termos que, ao contrário do termo escolástico,
tornam possíveis a elaboração compreensiva de uma experiência, e não a pura
racionalização do conceito. Afinal, Jesus se deu no pão e o no vinho, para que
os seus discípulos e discípulos dele façam experiência e, assim, colham os
frutos espirituais dessa comunhão. O papel da catequese é tornar acessível
experiências, profundas e legítimas, e não a racionalização da fé, pela
apreensão de conceitos. A inteligência da fé passa, pois, por experiências, e
não pelo mero exercício racionalizante. Nessa perspectiva, cuidar da linguagem
é fundamental.
A insistência nos nossos artigos sobre a eucaristia, em repetir a expressão “pão e vinho eucaristizados”, por exemplo, tem por função chamar a atenção de que, após a consagração, isto é, a bênção de ação de graças, o pão continua pão e o vinho, vinho, materialmente: a mudança, a transformação, se dá em outro nível: é corpo e sangue de Cristo, só que sacramentalmente e esse é o grande valor salvífico para nós. Isso não é, em definitivo, desvalorizar a Eucaristia: muito pelo contrário, é compreendê-la no seu justo lugar, de modo sadio e verdadeiramente espiritual. Uma má compreensão a respeito das espécies eucarísticas, muito baseadas numa linguagem imprópria para nosso tempo, dá margens à absolutização e à fetichização da eucaristia, como já temos insistido há semanas, neste espaço. Na próxima semana, a catequese continua!
Felipe
Magalhães Francisco é teólogo. Articula a Editoria de Religião deste portal. É
autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux, 2015). E-mail: felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com
Fonte:
domtotal.com
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