O capitalismo é uma religião
(Christian Dubovan/ Unsplash) |
O progresso da humanidade depende de sua libertação da
religião do capital
O capitalismo é uma
religião, sugeriu uma vez o genial sociólogo Walter Benjamin. Para existir, é
preciso que as pessoas acreditem nele. Milhões de pessoas no mundo não pensam
muito nisso, estão imersas no sistema capitalista ou creditam piamente. Outro gênio,
Max Weber, informou que o espírito do capitalismo é protestante, privilegia o
esforço e o trabalho em busca de recompensas terrestres, além de prometer
também o céu.
As pessoas continuam a
acreditar no capitalismo, ainda que permaneçam nele e algumas gostem de possuir
capital? Tenho minhas dúvidas. A maioria no mundo não usufrui dos privilégios
do capital—apenas cerca de um por cento. As massas só pegam certas migalhas do
consumo. A miséria é muito grande em toda a parte, inclusive em zonas sensíveis
do Primeiro Mundo.
A assim chamada
globalização, na verdade uma ampliação sem precedentes da comunicação, só fez
aumentar o número de crentes, sedentos de participar das benesses dos grandes
centros de riqueza. As multidões de refugiados não vão apenas atrás de abrigo,
mas dos polos fornecedores das migalhas para a sobrevivência. Pode-se
pensar que essas pessoas fogem de onde o capitalismo falhou ou não se
implantou, mas o fato é que as áreas do mundo onde houve essa falha pode ser
apenas o enorme reflexo de um mal funcionamento central.
Dois mitos centrais
que sustentam hoje a religião capitalista são o do “crescimento infinito” e o
do “consumo infinito”. Fazer a máquina do capital funcionar é obter um
crescimento econômico sem cessar (PIB, produtividade, etc.). O sistema exige
isso automaticamente e, em consequência, decorre a demanda de um consumo
infinito, em perfeito equilíbrio com as contas de cada economia. No registro
imaginário das ideologias das sociedades capitalistas esses dois mitos foram
naturalizados. Não pode haver economia sem crescimento e sem consumo em fluxo
constante.
Marx, um crítico,
também acreditou no capitalismo. Tanto que sua visão de passagem para uma outra
sociedade sairia, sobretudo , das virtudes do capital e seria uma transformação
natural (dialética) em direção ao comunismo, o reino da liberdade.
Sua ideia de revolução
não tinha nada a ver necessariamente com violência física, ainda que
registrasse a luta de classes e seus efeitos políticos, mas seria o resultado
do desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, que encontraria
barreiras nas relações sociais envelhecidas, provocando a mudança. Não falava
de decadência econômica do sistema, mas de seu auge.
Marx era um
racionalista e, para ele, tudo tinha que ter uma lógica estrita e
compreensível. Incomodava-o o fato de existir racionalidade nas fábricas e na
produção, mas anarquia nos mercados e na sociedades. No comunismo, supunha, não
haveria contradições como essa. O comunismo seria a reconciliação da razão
consigo mesma.
Ao contrário dos
otimistas, sejam eles os crentes do capitalismo, sejam os adeptos fervorosos da
“razão histórica”, desconfio que a religião capitalista começa a ser alvo de
ceticismo até por parte os seus maiores adoradores.
A brutal desigualdade
mundial das riquezas e de sua distribuição; as crises sucessivas, as revelações
de que o mito do crescimento infinito é só isso mesmo, um mito, pois a
destruição dos recursos da Terra coloca um limite real; a repetição de
pandemias cada vez piores em devastação, decorrentes da divisão do trabalho na
globalização do capital e na circulação internacional ; as massas de
desempregados—tudo isso cria um quadro nada promissor para os seguidores do
Mercado, essa espécie de Deus dos adoradores do bezerro de ouro.
Os que acreditam na
racionalidade do capitalismo chamam a atenção para a sua plasticidade e
capacidade de se adaptar, achando soluções para suas diversas crises. Não fosse
assim – dizem – o capitalismo já teria sucumbido, digamos, em 1929, mas achou a
saída do New Deal norte-americano, pondo em ação o Estado protetor. Essa
flexibilidade do sistema existe, de fato, pois torna tudo mercadoria: camisetas
com estampas de Che Guevara viraram moda de consumo e o Vietnã se tornou uma
economia de mercado.
Tudo, porém, tem um
limite. É possível indagar se o capitalismo não estaria atingindo o seu
ponto entrópico. Seu limite seria a destruição de seus recursos de
adaptabilidade, ou seja, seu limite poderia ser a sua própria destruição.
Freud escreveu uma
crítica da religião intitulada O futuro de uma ilusão, talvez
o seu texto mais duro sobre a sociedade. Mostra que a religião é uma
necessidade para socorrer o desamparo das pessoas diante da vida e da morte,
mas também um erro do tipo obsessivo, consistindo numa defesa contra a
realidade e um fruto da ignorância. Sua esperança era de que, no futuro, os
humanos pudessem prescindir da crendice e da religiosidade com o
desenvolvimento da ciência e da educação.
A única analogia que
proponho aqui com a obra de Freud é a hipótese de que a humanidade possa
prescindir da crença no capitalismo como única forma de progresso, não pela
evolução da ciência e da educação, mas pela evidência de que a natureza
destrutiva do capitalismo ameace a própria existência do homem na Terra.
*Reinaldo Lobo é psicanalista e
articulista
Fontr:domtotal.com
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