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Em tempos de coronavírus, o próximo se torna um
perigo em potencial |
Os seres humanos
precisam de outros seres humanos. Mas em tempos de coronavírus, o próximo se
torna um perigo em potencial. Como podemos nós, como cristãos, superar o estado
de emergência?
As celebrações são
proibidas. Apenas alguns dias atrás, essa afirmação seria impensável na
Alemanha. A interferência no direito fundamental à liberdade de religião
tornou-se necessária, porque o "direito à vida" é um bem primário de
nossa Constituição. A pandemia, que envolveu o mundo inteiro, perturbou toda a
nossa vida em poucos dias e nos colocou diante de grandes desafios. Há aqueles
que respondem ao choque fisicamente e permanecem como que paralisados olhando
as telas ou se fecham em tranquilizadores mundos de ficção.
Há quem entra na
"modalidade de crise" porque nada mais pode ser feito. São aqueles
que, 24 horas por dia, tomam decisões difíceis, organizam planos de emergência,
mantêm funcionando hospitais, clínicas, segurança interna e externa, aqueles
que recolhem o lixo diante de nossas portas, que tentam dar coragem aos idosos
que não podem mais receber a visita dos netos.
Quem conhece médicos e
enfermeiros, quem fala com bombeiros ou policiais, quem conhece aqueles que têm
responsabilidades em política e economia, em escolas ou órgãos sociais, sabe o
que quero dizer. Unidades de crise precisam ser montadas e convocadas, e minuto
após minuto devem sem enfrentados cenários que a maioria dos alemães conhece
apenas dos filmes. Enquanto isso, as crianças gatinham sob a mesa que agora se
tornou o escritório em casa.
Mas o "trabalho
livre" cercado de crianças chorosas, entediadas e assustadas tem pouco a
ver com o que é cantado em livretos brilhantes. Músicos, artistas, intérpretes,
treinadores e todas as pessoas que são profissionais liberais se perguntam como
poderão pagar o aluguel de abril. Aqueles que abastecem diariamente grandes
quantidades de suprimentos nas prateleiras dos supermercados também devem agora
suportar o nervosismo dos clientes.
Nesta situação de
emergência, tomam a palavra "teólogos" salvadores do mundo, bancando
profetas que parecem saber exatamente como a situação está. "Flagelo de
Deus", me escrevem, resposta à excessiva liberalização e globalização, uma
punição que chama à conversão. Mulheres, judeus, chineses, o espírito da época
- voltam à moda todos os bodes expiatórios de sempre.
O isolamento social perturbou toda nossa vida me poucos dias.

'O
isolamento social perturbou toda a nossa vida em poucos dias'Todos aqueles que se submeteram ao espírito do tempo morreram,
escreve-me um desses sabichões e completa a frase com três pontos de
exclamação. Anexa a imagem de uma pintura de Pieter Bruegel, uma barafunda de
corpos em sofrimento esfolados pela peste com os olhos bem abertos e vidrados
pelo medo. Essa carta representa uma fantasia herética que é uma variante
cristã da teoria da conspiração.
Os artistas da Idade
Média tornaram visíveis com suas imagens apocalípticas as ânsias coletivas,
chamando a atenção para as misérias visíveis e invisíveis. Eles pintaram o
inferno na terra com cenas que nos lembram a situação atual das pessoas nos
campos da ilha de Lesbos. Os autoproclamados profetas do século XXI também se
divertem em abusar, como forma de evangelização, de cenários de pânico e horror
ligados a uma hipócrita superioridade religiosa e à presunção de serem
escolhidos.
Há também uma variante
secular dessas tentativas político-religiosas de encontrar um sentido na
pandemia. Nessa variante, a pandemia é um aviso para os idosos que não fizeram
o suficiente para impedir as mudanças climáticas. A indignação moral se
transforma em discursos apocalípticos de expiação.
Não, a Covid-19 não é o
"flagelo de Deus". Que Deus seria esse que ordenasse uma punição em
série nos quartos dos idosos e dos doentes?
A pandemia não é uma
cínica pedagógica de Deus, mas uma catástrofe natural em câmera lenta. É parte
da nossa realidade com suas ambiguidades, com suas muitas nuances entre luz
brilhante e escuridão profunda. Em teologia, falamos de "criação
caída". Nesse sentido, o mundo sempre esteve em dificuldade, às vezes
mais, às vezes menos. Nos primeiros séculos, os humanos percebiam uma
experiência maior dos perigos de doenças que despovoavam regiões inteiras. Isso
é testemunhado por antigos hinos religiosos que talvez agora voltem à nossa
mente, porque ousam expressar com palavras de fé a profunda experiência de
impotência e de eclipse de Deus.
Agora estamos vivendo
uma situação tão excepcional, porém acompanhada por uma gigantesca máquina de
informação e imagens que nos segue permanentemente com a internet e as mídias
sociais e que também podem levar à acomodação e à náusea.
Certamente, não atribuir
um significado religioso à pandemia, e em vez disso perguntar-se a partir do
Deus da Paixão o que cristãos e cristãs, como comunidade ou indivíduos, podem
fazer, estar presentes uns aos outros nessa realidade que está se transformando
de maneira tão dramática. As celebrações comunitárias ("cultos a
Deus") estão proibidas, os "encontros com Deus" não são
proibidos: usando, como muitos fazem, as possibilidades do meio digital.
'Nesses
tempos, a distância física é uma expressão de amor ao próximo'A necessidade ensina não apenas a rezar. As pessoas "se
reúnem" com orações no twitter, transmitem em streaming pensamentos de
devoção, organizam linhas diretas para diálogos e temas pastorais.
Assim, para aqueles que
nunca teriam posto os pés em uma igreja, o limiar a ser superado se torna muito
mais simples. Além disso, a "comunhão dos santos" de que os cristãos
falam na profissão da fé sempre foi uma fita invisível que inclui e envolve o
mundo inteiro. Nestes nossos dias, a distância física é uma expressão de amor
ao próximo. Assim, a Igreja tem um novo paradoxo de amor que deve ser aceito
não com os dentes cerrados e contra a vontade, mas pelo amor dos mais fracos.
Talvez este seja o
momento em que as experiências religiosas e as trocas espirituais, e também as
discussões teológicas e a pastoral não devem ser entendidas na forma de
"eventos externos", mas como energia espiritual que surge onde
"dois ou três" se ajudam, uns aos outros. A dimensão da diaconia da
fé torna-se, se possível, parte da consciência do próprio papel, mesmo que as
grandes instituições da diaconia tenham tido por muito tempo uma vida própria.
No ano litúrgico, há o
tempo da Paixão. Nestas últimas semanas, cristãos e cristãs lembram o caminho
da cruz de Cristo. Eles retornam todos os anos para refletir sobre a ideia
sempre escandalosa de que Deus se mostra na perda e na traição do amor, na dor
e angústia da morte e não no governo ditatorial do mundo.
'O
duro cotidiano dos idosos, que não podem receber a visita dos netos'A ideia de paixão inclui em si aquela de substituição. Cada um
está disposto a aceitar muito pelos outros, Jesus até tudo. A ideia antiga da
vítima encontra seu desenlace na dedicação aos outros. Portanto, a ideia de
garantir uns pelos outros não é uma moralização superficial do evento profundo
da cruz, mas sua consequência prática. Sequela Christi não é uma expressão
vazia se a Igreja se torna um lugar onde o bem dos outros é colocado no centro.
Isso pode ser feito de maneiras criativas, mesmo em um momento em que se não
pode trocar nem sinal de paz e não se pode ficar lado a lado nos bancos da
igreja.
O senso de comunidade
não é uma palavra vazia daqueles que falam de um mundo ideal, mas o pensamento
bíblico fundamental que determina a maneira como os seres humanos se
relacionam. Já acontece isso na Bíblia hebraica e Jesus o refere a si mesmo.
Ninguém sabe o que os próximos dias e semanas trarão, como as famílias
suportarão as restrições e as preocupações dentro delas, quando os nervos
estarão em frangalhos e as angústias existenciais crescerão. Ninguém sabe como
as crianças vão suportar esse período de isolamento. Ninguém sabe até que ponto
o vírus da solidão nos pegará.
A fé cristã não é uma
defesa contra o contágio nem uma garantia de estabilidade psíquica. Nós
precisamos uns dos outros. A Igreja como comunidade de memória e de narrativa,
como comunidade de oração e comunidade de ajuda por um certo período de tempo,
não precisa se ocupar de si mesma. Em vez disso, pode se concentrar naquela que
é sua tarefa: anunciar a proximidade de Deus, com a atenção e o amor, com a
oração e com pacotes diante da porta de casa, com telefonemas e canções nas
varandas, com o apoio para as pessoas em situações de dificuldade psicológica
ou prática. E se, no meio tempo, a força faltar e a exaustão se espalhar, com a
profunda e antiga profissão de fé: "Deus acredita em nós".
*Petra Bahr, teóloga
alemã evangélica, em artigo para o jornal Die Zeit. A tradução da versão
italiana é de Luisa Rabolini.
Fonte: domtotal.com
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