Precisamos, o
quanto antes, evoluir para uma sociedade pós-capitalista na qual os direitos
coletivos estejam acima dos privilégios da acumulação de capital privado
A
Covid-19 nos obriga a adotar antigos hábitos que, em tempos normais, nem sempre
são cuidadosamente observados, como lavar as mãos. O brasileiro gosta de tomar
banho, mas não tinha o costume de lavar as mãos com frequência. Nos
restaurantes a quilo, quantas pessoas, vindas do trabalho, passavam antes pela
pia?
Agora,
tiramos do baú artefatos triviais que nos protegem da infecção: o sabão,
inventado pelos fenícios há 2,6 mil anos; a máquina de costura para
confeccionar máscaras, inventada pelo inglês Thomas Saint, em 1790; o
isolamento social, adotado na Europa desde o século V frente à disseminação da
peste.
As
crises exacerbam o que temos de altruísmo e egoísmo. De um lado, se amplia a
ampla rede de solidariedade para socorrer os mais pobres. Poucos se perguntam
por que existe pobreza. E muitos que contribuem para gerá-la, indiferentes à desigualdade
social, agora destinam recursos a eles. Fico na dúvida se por compaixão ou para
evitar que, a partir deles, o vírus não se propague e perdure.
De
outro lado, governos, como o dos EUA, praticam descaradamente a pirataria ao se
apropriar de respiradores, máscaras e equipamentos de proteção individual. O
mais grave é empresas exportadoras aceitarem o leilão dos produtos vendidos a
países que chegam a pagar o triplo do preço, prejudicando os demais.
No
início de abril, 600 respiradores, no valor de R$ 42 milhões, foram retidos no
aeroporto de Miami e impedidos de chegar à Bahia. A França denunciou os EUA
pelo mesmo motivo. A Itália acusou a República Tcheca de roubar-lhe um
carregamento de máscaras vindas da China no avião que fez escala em Praga. Empresas
asiáticas comunicaram a governos africanos e latino-americanos que não mais
lhes venderiam material sanitário porque os EUA e a União Europeia pagavam por
eles valores mais altos.
Outra
face sombria despertada pela pandemia são as novas formas de discriminação ao
suposto infectado. A suspeita de que a moradora de um prédio, na capital
paulista, teria contraído o vírus foi o suficiente para ela encontrar, preso ao
para-brisa de seu carro, estacionado na garagem, um bilhete anônimo exigindo
que mudasse de domicílio. Também são encarados com ojeriza idosos que vivem
sozinhos e precisam ir à rua para comprar alimentos e medicamentos. Agora,
qualquer tosse ou espirro soa como fatal...
Nos
EUA, Dan Patrick, vice-governador do Texas, chegou a declarar que “os avós
deveriam se sacrificar e aceitar morrer para salvar a economia” (El Mundo,
Madri, 24/3/20). Rick Santelli, comentarista do canal CNBC, dos
EUA, propôs, como darwinismo sanitário, inocular o vírus em toda população.
Isso viria a acelerar o seu curso inevitável, mas traria estabilidade aos
mercados (El Salto, Madri, 11/4/20). Na Holanda, Frits Rosendaal,
epidemiologista-chefe da Universidade de Leiden, declarou que “não devemos
admitir nas UTI pessoas muito velhas ou demasiadamente vulneráveis”.
Em tese,
a Covid-19 não faz distinção de classe, idade, etnia ou ideologia. De fato,
sociedades como a brasileira, na qual mais de 50% da população não dispõem de
saneamento básico, os pobres são as primeiras potenciais vítimas. Em um país
como o nosso, em que 1% da população detém ¼ da riqueza nacional, não é de se
estranhar a grita pelo fim imediato do isolamento social. Porque, enquanto os
empregados se arriscariam, os patrões ficariam bem protegidos em suas redomas
de luxo.
Onde o
serviço de saúde se transformou em mercadoria, como aqui, os segmentos sociais
empobrecidos ficam mais expostos à infecção. Como exigir cuidados de quem não
tem água corrente em casa ou não pode se isolar em um barraco de favela onde a
família se amontoa?
Agora,
muitos se convencem de que a salvação está na intervenção do Estado e não no
liberalismo do mercado. Como afirma Noam Chomsky, “esta crise é o enésimo
exemplo do fracasso do mercado. E exemplo também da realidade da ameaça de uma
catástrofe ambiental. O assalto neoliberal deixou os hospitais desprovidos de
recursos. Os leitos de hospitais foram suprimidos em nome da “eficiência
econômica”... O governo estadunidense e as multinacionais farmacêuticas sabiam,
há anos, que havia grande probabilidade de que se produzisse uma pandemia. Mas
se preparar para isso não convinha aos negócios e, por isso, nada se fez” (Il
Manifesto, Roma, 18 março 2020).
O
filósofo Edgar Morin constata que “afinal, o sacrifício dos mais vulneráveis –
idosos e enfermos – é funcional na lógica da seleção natural. Como ocorre no
mundo do mercado, o que não suporta a competição é fadado a morrer. Criar uma
sociedade autenticamente humana significa opor-se a todo custo a esse
darwinismo social” (France 24, Paris, 15 abril 2020).
A
pandemia veio mostrar que o capitalismo, com a sua lógica de livre mercado e
Estado mínimo, é uma panaceia para os males do mundo. Precisamos, o quanto
antes, evoluir para uma sociedade pós-capitalista na qual os direitos coletivos
estejam acima dos privilégios da acumulação de capital privado.
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