QUAL O PROBLEMA SE MEU PRÓXIMO MORRER?

A pergunta descarada feita por Caim,
'acaso sou eu o guardião do meu irmão?', ainda se manifesta na sociedade atual
O livro do Gênesis, em
um dos seus primeiros relatos, narra a relação entre Caim e Abel. Ela é
largamente conhecida e diversos sermões foram feitos a respeito das ofertas
oferecidas por um e outro, da aceitação por Deus da oferta de Abel recusa
da de Caim.
Algo importante a ser
lembrado é que o texto mostra o conselho dado por Deus a Caim para que ele
estivesse atento, uma vez que o mal estava à sua porta, cabendo-lhe deixar
dominar por este ou não (cf. Gn 6,7). A liberdade humana, a partir desse
conselho divino, coloca-se como fator fundamental na relação da humanidade com
o mal. Somente o ser humano pode decidir a respeito do mal que faz ao seu
próximo e a si mesmo, trazendo sobre si a consequências de seus atos.
Diante do mal
cometido, como nos mostra a narrativa, Caim ao ser questionado por Deus
responde com uma pergunta descarada em relação ao destino de Abel: “Acaso sou
eu o guardião do meu irmão?” (Gn 4,9). À resposta sem vergonha de Caim segue a
acusação e o julgamento divino sobre ele.
Em tempos de pandemia,
nos quais se demanda isolamento social para que a curva do gráfico de contágio
diminua e o sistema de saúde não entre em colapso, vemos diariamente pessoas
que reverberam a mesma pergunta de Caim frente à indagação de Deus sobre seu
irmão. Mesmo sabendo das recomendações de isolamento, acreditam que o mal não
chegará a eles e, por isso, consideram que não há nada de errado em fazer
somente uma saída para encontrar amigos e familiares ou para fazer exercício ao
ar livre. De alguma forma, é como se dissessem juntamente com Caim: “que tenho
eu a ver com meu irmão? Acaso sou guardião dele? Devo me importar com o que lhe
acontece?”.
Ao contrário de Caim,
que matou seu irmão por inveja, tais pessoas escolhem matar seus irmãos e
semelhantes por puro egoísmo e satisfação de seus prazeres momentâneos,
acreditando que suas demandas e necessidades de encontro, lazer etc. são mais
importantes e urgentes do que o bem-estar da sociedade em que vivem.
Escolhem não perceber
que suas atitudes (a princípio super bem intencionadas) colocam em risco a vida
das pessoas que amam, podendo até mesmo levá-las à morte. Neste sentido, como
Caim, tornam-se responsáveis por sangue inocente, simplesmente por sucumbirem
aos seus desejos e pseudonecessidades.
Sabemos que são tempos
difíceis e que se manter longe das pessoas que amamos é algo complicado neste
tempo. Contudo, é importante seguir as orientações de isolamento social para
que menos pessoas sejam afetadas pelo vírus e, consequentemente, aquelas que o
forem possam ser tratadas e se recuperadas mais facilmente.
O bem-estar social
neste momento é mais importante que o bem-estar individual (algo difícil de ser
assimilado por uma sociedade capitalista e egoísta como esta em que vivemos).
Contudo, praticar isso neste momento pode ser a única forma capaz de salvar a
todas as pessoas que amamos. Como mostra o texto, somente nós podemos escolher
o mal ou o bem que fazemos. Deus não escolherá por nós e também não tirará as
consequências dos atos que tomarmos.
Longe de querer causar
medo em Caim, o conselho de Deus visava, como sempre, ao ajuste de sua rota
para que trilhasse no caminho correto. Da mesma forma, a pregação de isolamento
atual não é para gerar alarmismo e desespero, mas visa justamente salvar vidas
e garantir que a sociedade possa se reerguer o quanto antes desse mal que nos
assola.
*Fabrício Veliq é protestante e
teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE),
Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em
Filosofia e Licenciado em Matemática (UFMG) E-mail: fveliq@gmail.com
Fonte: domtotal.com.br
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