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A espiritualidade prescinde das religiões (Karl
Fredrickson / Unsplash) |
O que está em crise hoje não é a
espiritualidade, mas as formas tradicionais de religião
A espiritualidade é,
como a sexualidade, uma dimensão constitutiva do ser humano. Essa
potencialidade neurobiológica pode ou não ser cultivada. Uma pessoa desprovida
de espiritualidade prescinde da percepção da profundeza de sua subjetividade.
Nela os desejos prevalecem sobre os ideais.
Se Sócrates e Descartes
nos despertaram para a inteligência racional; Colleman, para a emocional; foi a
física e filósofa Danah Zohar que chamou a atenção para a inteligência
espiritual. Maria Corbi sugere que a espiritualidade se resume em IDS:
Interesse (por ela); Desapego (de si e dos bens finitos); Silenciamento
(concentrar-se para descentrar-se no Outro e nos outros).
À primeira vista,
espiritualidade opõe-se à materialidade. E o espírito ao corpo. Esse dualismo
platônico está superado, tanto pela ciência quanto pela teologia. Somos todos e
tudo uma Unidade. Os mesmos 92 átomos encontrados em nosso corpo são os
“tijolos” que edificam o conjunto do Universo.
A espiritualidade
prescinde das religiões, pode ser vivida sem elas, e há religiões desprovidas
de espiritualidade, asfixiadas pelo peso do doutrinarismo autoritário. Sócrates
(470 a.C.-399 a.C.) e Sêneca (4 a.C.-65 d.C.) eram homens profundamente
espiritualizados, “santos pagãos”, embora destituídos de uma religião.
As religiões surgiram no
período neolítico, quando o ser humano, até então nômade e coletor, fixou-se na
atividade agrícola, tornando-se sedentário. Seu ponto axial foi o século VII
a.C. Nele nasceram e/ou viveram Buda (600), Lao-Tsé (604) Zaratustra (660) e os
profetas Jeremias e Daniel.
A religião, como
instituição, surgiu naquela época. Antes, predominava a cosmovisão tribal,
comunitária, voltada a aplacar a ira dos deuses e obter proteção diante das
catástrofes naturais, sem individuação do sujeito frente à divindade. Só a
partir do século VII a.C. o ser humano passa a ter consciência de sua relação
pessoal com Deus.
A religião surge como
forma de controle da sociedade agropastoril e seus grandes relatos disciplinam
o caos ético, ao mesmo tempo que interioriza o poder da autoridade.
Hoje, o que está em
crise não é a espiritualidade. São as formas tradicionais de religião. Nesse
mundo secularizado, desencantado, os valores são substituídos pelas ciências; o
ser pelo ter; o ideal pelo desejo; o altruísmo pelo consumismo. Assim, a
religião reflui para a vida privada e os locais de culto. E deixa de influir na
vida social.
No interior das próprias
Igrejas cria-se a dicotomia: fiéis se distanciam da doutrina e da moral
oficiais, como é o caso do uso de preservativos por católicos. Como nas
relações de trabalho, ocorre uma flexibilização institucional da crença. Ela se
constitui num amálgama de propostas, formando um mosaico esotérico.
A crise da Cristandade,
no Renascimento, não significou a crise do cristianismo. Da mesma forma, a
crise das religiões não pode ser confundida com a da espiritualidade. Agora nos
deparamos com uma espiritualidade pós-axial, laica, pós-religiosa, centrada na
autonomia do indivíduo.
O que caracteriza essa espiritualidade pós-moderna é, de um lado, a busca, não do outro, mas de si, da tranquilidade espiritual, da paz no coração. Nesse sentido, trata-se de uma espiritualidade egocêntrica, centrada no próprio ego. De outro, uma espiritualidade política, voltada à promoção da justiça e da paz, comprometida com a ética e a proteção do meio ambiente.
Vale retomar o esquema
Corbi: hoje, uma espiritualidade evangélica deve ter clareza de seus objetivos.
O meu próprio bem-estar subjetivo ou também uma sociedade fundada na justiça?
Deve propiciar o desapego aos bens finitos, como mercadorias, poder, dinheiro,
fama, de modo a favorecer o cultivo dos bens infinitos: amizade, solidariedade,
compaixão. E, sobretudo, fundar-se no silenciamento, na abertura dialógica,
orante, a Deus; na atitude servidora aos outros; na reverência devocional à
natureza.
Frei Betto.
Fonte: domtotal.com
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