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No Eixão Sul, Brasília, painéis luminosos exibem dicas aos motoristas para evitarem o coronavírus (Marcello Casal Jr /
ABr) |
Se ficar em casa,
morre de fome. Se sair, de infecção. Não lhe resta alternativa? Sim, há
alternativa. Chama-se governo. Você não tem consciência disso, mas ele é seu
empregado
Você,
como a maioria da população mundial, sobrevive graças ao fato de trabalhar
muito e ganhar pouco. Por não ter tido acesso a direitos básicos, como educação
gratuita de qualidade, você trabalha mais com o corpo que com a mente. Exerce
uma atividade quase mecânica ameaçada de, em breve, ser ocupada por
computadores e robôs.
Você
não tem casa própria, plano de saúde e reservas bancárias. Se não trabalhar,
não come. Por isso, é obrigado a viver para trabalhar, quando deveria ter o
direito de trabalhar para viver.
De
repente, irrompe a peste. E contra ela não há defesas do organismo nem vacinas.
Surgida na China, em dezembro de 2019, em menos de seis meses se globalizou. O
único recurso para não ser infectado é o isolamento social. Ficar em casa.
Evitar sair à rua. Abrir o computador e trabalhar online. Tirar da estante o
livro de culinária e preparar a própria refeição. Usar o telefone para
solicitar entregas em domicílio.
Ocorre
que você não pode se dar a esses luxos. Não dispõe de computador e precisa
poupar os créditos do celular. Você é um dos 50 mil comerciários desempregados
em São Paulo. A loja em que trabalhava está de portas fechadas. Não há data
para reabrir. O proprietário despediu todos os funcionários. A partir do
próximo mês você não receberá salário.
Você
não pode ficar em casa. A exemplo de lobos e águias, é obrigado a agir como
todos os animais diante da necessidade de alimentar seus filhotes – sair da
toca ou do ninho. Se ficar em casa, os filhos terão fome. Você precisa ir à
rua: para fazer biscate, ingressar na fila do auxílio emergencial do governo,
comprar comida e remédios. Forçado por sua condição social, é obrigado a se
expor ao risco de contaminação pela Covid-19 ao entrar no ônibus, no metrô e em
filas. E se isso acontecer, infectar sua família.
A
espada de Dâmocles paira sobre a sua cabeça. Se ficar em casa, morre de fome.
Se sair, de infecção. Não lhe resta alternativa?
Sim, há
alternativa. Chama-se governo. Você não tem consciência disso, mas ele é seu
empregado. Porque quem o administra foi colocado lá também pelo seu voto. E
todo o dinheiro que ele tem vem dos impostos que você e outros milhões de
brasileiros pagam. Sim, sei que você é isento de declarar imposto de renda. Ano
passado não ganhou mais de R$ 2.379,97 por mês. Ganhou R$ 1.497. Mas em cada
compra que fez, no mercado, na padaria ou na farmácia, os impostos estavam
embutidos nos preços das mercadorias.
O
governo tem a obrigação de garantir a sua vida e a de sua família. Em um
momento de pandemia como este, você poderia ficar em casa e se proteger se o
governo lhe garantisse uma renda básica. Sei que você tenta ter acesso ao
auxílio emergencial de R$ 600, mas lida com duas dificuldades, não ter
computador e enfrentar as longas filas à porta da agência da Caixa Econômica
Federal.
E por
que o governo não cuida da sua proteção e de sua família? Porque não tem
vontade política. Como o do Brasil, vários outros governos não assumem a
responsabilidade de proteger sua população. Nos EUA, o presidente Trump havia
declarado que a infecção “não passa de uma gripe comum”. Até que em 11 de março
ele se deu conta de que a Covid-19 já tinha se disseminado por 45 estados e
causado 40 mortes. E as ações das Bolsas de Valores despencaram. Então ele
mudou de tom. Um pouco. Não muito.
Como
Bolsonaro adora imitá-lo, disse aqui no Brasil que a enfermidade era apenas uma
“gripezinha”. Quanto subiu o número de mortes e ele foi perguntado o que
achava, reagiu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” Não fosse tão omisso
e desdenhoso, ele poderia fazer muito para evitar um genocídio no Brasil.
Não
fosse misógino, ele poderia fazer aqui o que mulheres chefes de Estado fizeram
em seus países. A primeira-ministra da Islândia, Katrin Jakobsdóttir, submeteu
todos os 365 mil habitantes do país a testes gratuitos. Apenas 10 mortes no
país. A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, obrigou os quase 5
milhões de habitantes do país a ficarem um mês trancados em casa. E fechou as
fronteiras do país. Teve apenas 21 mortes. E em nenhum dos dois países o
confinamento significou perda de renda das famílias.
Já os
governantes autoritários minimizaram o vírus, como Bolsonaro no Brasil, Orban
na Hungria, Duterte nas Filipinas, Modi na Índia e Áñez na Bolívia. E as mortes
se multiplicam dia a dia.
Surgido
na China em dezembro de 2019, o vírus se globalizou e fez o mundo parar. A
Terra não é plana, mas parou de girar. A peste provoca uma crise sistêmica.
Toda a economia entrou em colapso. Em muitos países funciona, pela primeira
vez, o toque de recolher em tempos de paz. As casas se tornaram prisões, com a
diferença de que as chaves ficam do lado de dentro das portas. A vida se
movimenta online. A burca, o véu islâmico que cobre o rosto das muçulmanas,
visto com tanto preconceito, é agora obrigatória para todos nós.
Você,
amigo, tem direitos. Mas muitos, que se encontram na mesma situação, não têm
consciência desses direitos nem se mobilizam para reivindicá-los. Saia da
inércia! Assuma a sua cidadania! E, na próxima eleição, vote melhor. E guarde
esta bela frase impressa nos containers chineses desembarcados na Itália em
solidariedade às vítimas: “Somos ondas de um mesmo mar, folhas de uma mesma
árvore, flores de um mesmo jardim”.
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