terça-feira, 2 de junho de 2020
ARCEBISPO DE MANAUS: "VÍRUS JÁ CHEGOU ÀS ALDEIAS INDÍGENAS"
Dom Leonardo Ulrich Steiner diz que
população infectada é maior no interior do que na capital do Amazonas
José Maria Mayrink
O arcebispo de Manaus, dom Leonardo Ulrich Steiner,
de 69 anos, assumiu a arquidiocese em fevereiro, no início da pandemia do coronavírus. Foi bispo auxiliar de Brasília e secretário-geral da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) depois de ter sido bispo-prelado de São Félix, no Araguaia (MT).
Primo do cardeal dom Paulo Evaristo Arns,
que presidiu sua ordenação episcopal em abril de 2005, convidou seu antecessor,
dom Pedro Casaldáliga, a continuar morando em São Félix. Não conhecia Manaus,
cujos habitantes o receberam bem. Dom Leonardo afirma
que tem boas relações com os governos estadual e municipal, mas até agora
nenhum contato com os desmatadores de florestas dos indígenas, ribeirinhos, quilombolas
e perseguidos que a Igreja defende. A maioria dos doentes de coronavírus vem do
interior para ser tratada na capital.
SAIBA MAIS
Grupos indígenas da Amazônia criam fundo internacional
para combater coronavírus
Prefeito de Manaus teme genocídio de índios com covid-19
No interior do Amazonas, pandemia zera estoque de
oxigênio e expõe indígenas a trabalhadores infectados
Índios lutam para conter avanço do coronavírus no
Amazonas
Covid-19 avança em terras indígenas remotas na Amazônia
Manaus tem 30 mil índios de diferentes povos, com 91 mortos nos 29
povoados atingidos. Cinco padres foram contaminados e um deles morreu. Os 39
seminaristas que foram dar assistência nos postos de atendimento também foram
infectados e internados, mas já se recuperaram e voltaram a trabalhar na linha
de frente. A arquidiocese não tem hospitais próprios e recebe ajuda de
instituições da Igreja na Amazônia, entre elas
o hospital da diocese de Parintins, à margem
do Amazonas, região de Santarém. Dom Leonardo disse, nesta entrevista ao Estadão, que Manaus enfrenta
os piores números da pandemia no Brasil, mas tem um
povo solidário na ajuda às vítimas da doença.
O senhor já conhecia a
arquidiocese de Manaus por seus contatos como secretário geral da CNBB. Recebeu
bem a nomeação de arcebispo, pois já havia manifestado ao Papa o desejo de
servir na Amazônia. Qual foi a realidade que encontrou ao tomar posse em
Manaus?
Serei sempre grato ao
papa Francisco por ter-me enviado para a Amazônia. Conhecia a Arquidiocese por
informações, faltava pisar o chão da cotidianidade. O tempo para ir ao encontro
das comunidades, áreas missionárias, paróquias e pastorais foi pouco. Pude
visitar duas áreas missionárias e encontrar-me com os padres, o conselho
presbiteral e algumas pastorais. Um mês e meio depois de chegar, entramos no
isolamento social. Agora são reuniões online, telefone, celebrações
transmitidas pelos meios de comunicação, servindo os mais necessitados. Posso
dizer que o acolhimento é umas características do povo amazonense. Você é o
arcebispo, isso que importa. Percebo uma sensibilidade religiosa profunda. Há
uma disponibilidade para o serviço junto ao povo da parte dos padres, diáconos
permanentes e da vida religiosa. É um povo solidário que sabe partilhar. Pude
perceber que existe pobreza nas periferias. Consegui visitar uma comunidade
formada de indígenas e pude participar de uma reunião com a Coordenação dos
Povos Indígenas de Manaus e Entorno. A receptividade das comunidades e a
partilha é familiar. Em várias comunidades onde celebrei havia depois da
celebração um café, algo para comer.
Quando o senhor chegou, estava começando o coronavírus. A cidade
estava iniciando o combate à doença. Qual o quadro que encontrou, em
organização e recursos? Quais foram as primeiras medidas que a Igreja tomou?
Outras dioceses e prelazias pediram socorro, mandaram doentes para Manaus?
O tempo da pandemia
acontece no tempo de gripe e viroses aqui. O Sistema Universal de Saúde, SUS,
não tem infraestrutura para uma emergência tão grande. Isso veio agravar a
situação de Manaus com a pandemia. Há um descaso com o SUS; não se investiu no
SUS. O recurso que encontramos é solidariedade do povo. Cancelamos a celebração
pública dos sacramentos já no dia 23 de março. Nas celebrações, fomos
informando as comunidades e famílias sobre a pandemia. O que podíamos oferecer
estamos oferecendo. Com o isolamento social, iniciamos a Campanha Puxirum
Manauara para recolher doações em alimentos e higiene e em dinheiro. Nossa
preocupação é acompanhar as pessoas que vivem nas ruas de Manaus, os migrantes,
os catadores, os indígenas, as famílias pobres. Hoje mesmo um dos padres que
trabalha na periferia me escreveu dizendo: 'conseguimos atender 216 famílias'.
É pouco, mas as mais necessitadas receberam algo para comer. O santo Padre nos
enviou uma ajuda através da Nunciatura Apostólica, entidades de ajuda internacional
também estão colaborando com nosso atendimento aos pobres. Temos trabalhado com
o Ministério Público, o Ministério Público do Trabalho e a Secretaria da
Prefeitura. É extraordinário a solidariedade!
A cidade de Manaus é habitada
por mais da metade da população da Amazônia. Temos mais de 2 milhões de
pessoas. A capital é a única cidade com recursos mais apropriados para doenças
graves.
Todos os municípios
dependem de Manaus quando se trata de doenças graves. Infelizmente, o interior
está ainda mais abandonado que a cidade de Manaus quanto à saúde pública.
Manaus recebe de todo o Estado do Amazonas os doentes mais graves. Hoje temos
uma população infectada pelo vírus maior no interior do que na capital. O vírus
já chegou às aldeias indígenas.
A igreja ou as congregações
religiosas tem hospitais e outros equipamentos de saúde em Manaus e seus
arredores?
Infelizmente a igreja
não dispõe de um hospital ou meios que possam oferecer um espaço onde os pobres
sejam recebidos neste momento. Teria sido importante para podermos também neste
aspecto estarmos presente durante a pandemia. Temos a pastoral da saúde que
procura levar informações para os cuidados quanto à covid-19. A igreja tem um
hospital em Parintins que é dirigido pela diocese.
Quantos padres e seminaristas
tem a arquidiocese? O senhor recebeu reforços religiosos ou leigos?
A presença dos leigos
na arquidiocese é significativa, graças a Deus. A arquidiocese tem 32
seminaristas contando os que estão no propedêutico, filosofia, teologia, ano
pastoral e um que aguarda a possibilidade de viajar para Moçambique como
missionário. O seminário também acolhe os seminaristas das dioceses e prelazias
que compõe o regional norte 1. Contamos com 45 diáconos permanentes exercendo o
ministério. A arquidiocese conta com 55 padres entre os incardinados e os que
foram enviados por outras dioceses tanto do Brasil quanto do exterior. Temos a
presença de religiosos de 22 Ordens e Congregações, somando mais de 100 padres
religiosos. Contamos com um bom número de consagrados atuando nas diversas
áreas de evangelização, como também novas comunidades. Estou buscando ajudas,
mas nesse tempo de pandemia o contato é mais difícil.
Quantos foram infectados,
quantos tiveram de ser internados e quantos se recuperaram? Houve morte?
No momento temos um
sacerdote hospitalizado. Tivemos quatro padres internados, dos quais um veio a
óbito, Padre Cairo Gomes. Tinha 41 anos de idade. Não tenho a confirmação por
análise laboratorial, mas tivemos pelo menos 14 padres que apresentaram os
sintomas, foram medicados e estão bem. Os seminaristas, apesar do isolamento,
manifestaram sinais da covid-19. Receberam a visita de dois médicos, foram
medicados e no momento todos voltaram às atividades internas e ao estudo
online.
Qual é a situação dos indígenas
quilombolas, ribeirinhos e outras populações mais desassistidas? Quantos
infectados, quantos internados, quantos mortos?
A presença indígena é
numerosa em Manaus e, nesse tempo de pandemia, não consegue atendimento médico
como deveria. A Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno fez um
levantamento da população indígenas na cidade de Manaus. Temos mais 30 mil de
diferentes povos. A Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), com dados
de organizações regionais, aponta 170 casos. Provavelmente, hoje, é maior que
esse número. Isso acontece devido à dificuldade de acesso aos resultados dos
testes da covid-19. São 29 povos indígenas atingidos pela pandemia até agora.
Até quinta-feira passada, o número de óbitos entre os indígenas era 91. Não esquecer
que quase 95% da população indígena vive na Amazônia. Já existia uma
fragilidade pelo desmatamento, grilagem de terras indígenas, garimpo
devastador. Houve pouca informação repassada às aldeias sobre a pandemia. Se
para nós a morte de um ente querido é difícil, para eles é uma dor que demora a
curar. Os quilombolas e ribeirinhos, como os indígenas, estão entre os mais
desassistidos. Isso pela distância. Não houve a preocupação de fazer chegar as
informações a essa população. Como os sintomas inicias são de uma gripe ou
virose, as pessoas chegam tarde demais ao hospital. Os hospitais repletos com
ambulâncias esperando para deixar o doente... No momento, a situação melhorou
diante a diminuição de internamentos e a criação de hospitais de campanha.
Como é o seu diálogo com o
governo? A igreja recebe ajuda? Os hospitais públicos e seus médicos e técnicos
são acessíveis.
Os hospitais públicos
estão defasados, para não dizer sucateados, para o atendimento. Profissionais
de saúde têm reclamado que não podem trabalhar com segurança por falta de
proteção adequada. Os profissionais de saúde são incansáveis. Alguns vieram a
óbito pelo vírus. Foi muito difícil trabalhar num hospital onde os pacientes
passam ao lado de mortos conforme mostrado pelos meios de comunicação. Temos
rezado sempre nas nossas celebrações pelos profissionais de saúde, mas também
por tantas pessoas que continuam a servir a sociedade nos serviços essenciais.
No dia que passei no cemitério encomendando corpos, percebi quantas pessoas que
a sociedade não vê e não dá valor, mas que estão ali a serviço: coveiros,
pessoas da limpeza, guardas, administração. Quando num dia são enterrados mais
de 50 corpos num mesmo cemitério o estresse toma conta de todos. Nesse tempo as
pessoas que recolhem o lixo durante a noite sem estarem suficientemente
protegidas... Admirável! Houve momentos de diálogo com pessoas do governo
estadual e municipal. Muito para encaminhar questões da pandemia. No entanto,
se a igreja pode oferecer uma contribuição mais decisiva na sociedade de Manaus
e no Estado do Amazonas, o diálogo não pode ser truncado e só de momentos.
Como o senhor foi recebido
pelos invasores de terras, pelos que expulsam os indígenas e os quilombolas e
pelos derrubadores de matas?
Ainda não houve
oportunidade de encontro. Não saberia dizer se há disponibilidade da parte
deles para isso.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário