Após o Freedom Day celebrado pelos
afro-americanos com particular emoção depois do assassinato de George Floyd, a
filha de Martin Luther King concede entrevista à mídia do Vaticano e fala sobre
a batalha não-violenta pela igualdade e ressalta a harmonia especial entre o
Papa Francisco e o seu pai.
Alessandro
Gisotti
A comunidade
afro-americana celebrou nesta sexta-feira (19), o Juneteenth, dia
que lembra o fim da escravidão, proclamado em 19 de junho (June Nineteenth)
de 1865, quando os soldados da União chegaram em Galveston, no Texas, e
decretaram o fim da Guerra Civil. Esse aniversário, que para milhões de negros
na América é reconhecido como o Freedom Day, foi vivido este ano em
um clima particular devido os protestos desencadeados pelo bárbaro assassinato
do afro-americano George Floyd por parte de um policial.
Sobre o compromisso
pela igualdade, pela cultura de paz e pelo valor da não-violência, o L'Osservatore
Romano e o Vatican News entrevistaram Bernice
Albertine King, filha de Martin Luther King Jr. Ativista apaixonada pelos
direitos humanos, como seu pai, e presidente do King Center de
Atlanta, Bernice Albertine vê uma grande harmonia entre seu pai e o Papa
Francisco, que encontrou duas vezes no Vaticano, em 2018.
P. - Não só os
Estados Unidos, o mundo inteiro ficou chocado com a morte de George Floyd.
Acredita que desta vez, aquela mudança que depois de tantas mortes de
afro-americanos já deveria ter ocorrido, pode finalmente acontecer?
R. - "Penso que o
mundo já estava suficientemente tenso por causa da pandemia de Covid-19 e,
assim, o vídeo que mostrou como George Floyd foi assassinado, naquela forma tão
cínica e cruel, tenha se tornado uma verdadeira acusação vitrificada para a
América e para o mundo. Milhões parecem ter percebido, em todo o mundo - como
meu pai costumava dizer - que "estamos diante da urgência feroz do
'agora'". Agentes de polícia, organizações e associações de matriz
religiosa recorrem aos líderes negros para obter uma resposta à pergunta
"O que devo fazer para ser salvo?". Algumas associações fornecem
recursos incríveis àquelas organizações cujo trabalho está focado na justiça
social e na igualdade racial. Outras organizações estão se perguntando como
criar um clima cultural que leve a uma verdadeira igualdade racial, do nível gerencial
até empresas que favoreçam o trabalho das minorias. Muitos departamentos
policiais estão revendo suas políticas; alguns deles já começaram a repensar
como o engajamento comunitário pode e deve ser realizado, além do policiamento,
e compreendendo a preocupação pelos serviços sociais. Acredito que desta vez as
reações e as respostas serão mais amplas e mais apaixonadas, e haverá um grande
número de brancos, mais do que nunca em relação a antes, participando dos
protestos. Se estivermos sempre mais unidos e concentrarmos nossa atenção em
objetivos estratégicos, certamente conseguiremos ser mais eficazes pela causa
da justiça.”
P. - Além do
racismo "óbvio" que se reconhece em situações trágicas como essa, há
outra forma de "racismo que não vira notícia": o racismo no trabalho,
na educação, nas condições de vida. Nos Estados Unidos, a Covid-19 afetou muito
mais a comunidade afro-americana do que a comunidade branca. Como será
derrotado esse racismo "invisível"?
R. – “Quero dizer,
antes de tudo, que é a recusa das pessoas em ver que faz o racismo sistêmico e
institucional parecer invisível. Quanto mais quisermos ver, e quanto mais
quisermos fazer mudanças, mais evidente será a natureza destrutiva e
desumanizante do racismo. Acredito que o primeiro passo para derrotá-lo é se
recusar a fechar os olhos e quanto mais recolher informações sobre o assunto e
conhecer as raízes, as causas e as manifestações do racismo. A informação e a
formação são o primeiro e segundo passo da Mudança Social Não-Violenta. Depois,
acredito que devemos nos empenhar a fazer o que, em seu livro “Where Do We
Go From Here: Chaos or Community?”, meu pai chamou de "a nossa tarefa
chata": dizia que devemos "descobrir como organizar a nossa força em
um poder irresistível para que o governo (e outras instituições e sistemas de
poder) não possam mais fugir das nossas exigências."
P. – Há 57 anos,
seu pai pronunciou o discurso histórico, “I have a dream” - Eu tenho um
sonho. Esse sonho ainda parece distante de ser realizado, mas todos dizem
que não se pode desistir desse sonho. O que seu pai faria hoje em uma situação
como a que estamos vivendo?
R. – “Acredito que meu
pai se guiaria pela sua filosofia da não-violência, que ia ao encontro com
aquela de Cristo. Acredito que ele nos lembraria como chegamos a este ponto, a
história de violência, racismo e injustiça que permeia a nossa nação e aquela
que ele chamava a "casa do mundo". Em seguida, se aproximaria dos
jovens para apoiar o empenho deles em protestar, com estratégias de apoio em organização
e mobilização para promover uma mudança social sustentável e não-violenta.
Então, ele pediria aos "influencers" no âmbito da política, da arte,
da mídia, do entretenimento, do sistema judiciário penal, da saúde e da
educação para garantir a igualdade e a justiça entre as raças. Também pediria
às Igrejas que conformassem as profissões de fé com obras que criassem
circunstâncias justas e iguais para as pessoas de cor, para as comunidades
economicamente marginalizadas, mas não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o
mundo. E, ainda, como já havia feito tantas vezes, ele repetiria que não se
pode curar a violência com a violência, porque essa é - como ele dizia - uma
espiral que nos arrasta para baixo. Certamente acredito que ele nos incitaria a
abraçar a não-violência, porque ela é estratégica, corajosa, focada no amor e
organizada, para construir a Comunidade do Amor, e isso inclui a
erradicação do que ele chamou de "Triplo Mal", ou seja, o racismo, a
pobreza e o militarismo.”
Martin
Luther King, em 28 de agosto de 1963, diante do Lincoln Memorial de Washington,
durante seu discurso histórico "I have a dream"
P. - Após a morte de George Floyd, o Papa Francisco fez um forte
apelo, ressaltando que não devemos fechar os olhos diante do racismo. Ao mesmo
tempo, porém, ele lembrou que a violência só leva à autodestruição. Como
aceitou estas palavras, tão fortemente alinhadas com aquelas do seu pai?
R. – “Concordo com o Papa Francisco: a violência só leva à
autodestruição. Os meios que usamos devem ser coerentes com o objetivo que
queremos alcançar e, se esse objetivo é a paz, certamente não podemos alcançar
a paz com métodos violentos. E isso certamente está de acordo com o pensamento
do meu pai. Ele afirmava - porque acreditava, como eu acredito - que ‘a
não-violência é a resposta aos problemas políticos e morais cruciais do nosso
tempo’. No seu último discurso – ‘Subi ao topo da montanha’ - que ele deu na
noite anterior ao ser assassinado, disse: ‘Não se trata mais de escolher entre
violência e não-violência no nosso mundo; agora é uma questão de escolher entre
não-violência e não-existência. Chegamos a esse ponto hoje’. E esse é o mesmo
ponto em que nos encontramos hoje. Estamos diante da escolha entre caos e
comunidade. Se abraçamos a violência, estamos escolhendo o caos, o que acabará
levando à autodestruição da nossa "casa do mundo". Se abraçamos a
não-violência, poderíamos progredir na construção de um mundo mais justo,
igualitário, humano e pacífico.”
P. - Martin Luther King disse: a justiça, “na sua melhor forma,
é o amor que corrige qualquer coisa que se oponha ao amor". Esse é o
coração da mensagem da não-violência, personificada por seu pai. Como podemos
construir uma "revolução da ternura", como define o Papa Francisco?
R. – “Acredito que realizar uma ‘revolução da ternura’, como
define o Papa Francisco, ou uma ‘revolução dos valores’, como dizia meu pai,
depende da medida em que nos damos conta que uma revolução desse tipo implica
num processo de consciência. Precisamos aprender a nos conhecer melhor, uns
sobre os outros, aprender a conhecer as condições da humanidade, aprender como
- para usar as palavras do meu pai – ‘viver juntos como irmãos e irmãs’ e não
morrer juntos como loucos; e aprender como nos empenhar para destruir a
injustiça e a desumanidade sem destruir uns aos outros. Eu acredito que essa é
a não-violência. A ‘Kingian Nonviolence’, aquela que o "The King
Center" chama de "Nonviolence365TM", é uma filosofia de
pensamento e ação que inclui seis princípios e seis passos que podem nos guiar
nessa revolução.”
P. - O movimento "Black Lives Matter" envolveu o mundo
inteiro. Muitas pessoas, especialmente os jovens, estão protestando contra o
racismo e a discriminação racial em muitas capitais europeias e também em
outros países. Quais são as suas esperanças para o futuro? Acredita que todos
nós conseguiremos ser capazes de dar um passo à frente no desafio da
fraternidade humana?
R. – “Estou confiante de que seremos capazes de aproveitar as nossas energias para focar no objetivo final que é aquele da construção da Comunidade do Amor, que não é uma utopia. Como dizia a minha mãe, Coretta Scott King, a Comunidade do Amor é uma visão realista de uma sociedade que pode ser construída, de uma sociedade em que existem problemas e conflitos, mas que podem ser resolvidos pacificamente e sem rancor. Na Comunidade do Amor, o cuidado e a compaixão guiam iniciativas políticas que apoiam a erradicação, em nível global, da pobreza e da fome, e de todas as formas de preconceito e de violência. Se o nosso objetivo comum, determinado e definitivo, é esse, então acredito que podemos percorrer o caminho da não-violência para alcançá-lo. Temos as capacidades e a enorme paixão de fazê-lo. Agora devemos colocar toda a nossa força de vontade para construir a Comunidade do Amor.]
Fonte: Vatican News
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