sexta-feira, 19 de junho de 2020
CORAÇÃO DIVINO QUE NOS HUMANIZA
“...aprendei de mim,
porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29)
Uma
das devoções que tiveram (e continua tendo) mais êxito ao longo da história da
Igreja é a do Sagrado Coração de Jesus. As “paredes” do universo estão cheias
do eco que as palavras da famosa jaculatória deixaram – “Sagrado
Coração de Jesus, eu confio em
vós”. São
incontáveis as vezes que foram pronunciadas, e imensurável a fé de que foi
portadora.
Graças
ao Coração de Jesus, entronizado em milhares de casas e colocado na porta de
milhões de lares, se manteve firme a experiência de prolongar a humanidade de
Jesus em nossas relações cotidianas, a vinculação do Evangelho com a vida
concreta, a vivência do amor, uma maneira original e inspiradora de se situar
no mundo (trabalhos, atividades, compromissos...), a sintonia com a Presença
Providente de Deus...
Para
muitos de nossos contemporâneos, causam uma certa resistência as representações
que mostram Jesus com o coração transpassado e, com frequência, rodeado com uma
coroa de espinhos. Se queremos atualizar esta devoção e encontrar um sentido
que responda aos anseios de muitas pessoas de hoje, é necessário deixar de
concentrar nosso olhar no “coração físico” de Jesus e recuperar o sentido
bíblico e amplo do coração, como centro de nossa afetividade e de nossas decisões
mais íntimas. Neste sentido, o Coração de Jesus revela a misericórdia de Deus
que se expressa em todas as palavras e atos do Mestre de Nazaré.
A
imagem do Coração de Jesus, em sua origem, fala de amor, com maiúsculas. O Amor. Não uma imagem suave das coisas nem
uma aproximação só emocional à fé, mas o Amor, que dizemos que é Deus, e que se
faz visível em Jesus. Amor verdadeiro, que é uma maneira original de olhar a
realidade, conhecendo-a, assumindo-a e comprometendo-se com ela. É assim que
Deus nos olha. É assim que Jesus nos olha.
Seu
coração se rompeu numa cruz, mas continua pulsando já ressuscitado. E essa
pulsação é hoje clamor em nossa história e nosso presente.
Jesus
vivia a partir de seu coração e contagiava com a força poderosa de seu amor e
de sua entrega.
Por
isso, a melhor devoção ao Sagrado Coração de Jesus é “entrar em Seu
coração”, é
sentir o amor que queimava n’Ele; é sentir-nos amados por Ele, é aprender que o
caminho do verdadeiro seguimento não é um ato de piedade, mas uma atitude de
vida no amor. É descobrir que a verdade das “Nove primeiras Sex-tas-feiras” não
se restringe em “confessar e comungar”, mas está no aprender a amar como Ele
nos amou.
Todos
estamos no coração de Cristo. Todo estamos no Amor de Deus. Todos fomos
introduzidos na Sagrada Humanidade d’Aquele que, sendo Deus, humanizou-se e se
fez semelhante a nós para que todos pudéssemos nos sentir n’Ele e nos
tornássemos um pouco mais humanos.
Uma
devoção ao Coração de Jesus que não nos conduz a estabelecer novas relações
humanas, prolongando o modo humano de ser e de viver de Jesus, torna-se uma
devoção vazia, estéril, marcada por uma piedade alienante e alienada.
Na
nossa cultura atual, a imagem do coração perdeu muito de sua expressão, tornando-se muito banalizado:
corações nas emoções, nos desenhos, talhados em árvores, nas taças e chaveiros;
corações em canções, rompidos, roubados, feridos, apaixonados, pesados, leves;
corações que sentem, e outros insensíveis. O coração parece como um depósito de
sentimentos.
Por
outro lado, vivemos um contexto de muitos “corações de pedra”, intransigentes,
cheios de ressentimentos e juízos implacáveis, corações fechados em jaulas de
pré-juizos e de suspeitas, que acabam envenenando as relações e rompendo os
laços humanos.
A
devoção ao Coração de Jesus pode nos ajudar a descobrir as enormes
possibilidades de nossos próprios corações. O Coração divino que humaniza nosso coração,
tornando-o aberto e sensível a tudo o que é humano; ao mesmo tempo, ativa em
nós um coração que faz solidário e comprometido a afastar de nossas relações
tudo o que desumaniza: fechamentos, intolerâncias, julgamentos, preconceitos,
ódios...
O
Coração de Jesus nos capacita olhar a realidade, compreender cada pessoa em sua
situação e viver oblativamente, a partir da gratidão e da responsabilidade. Ao
sentir o pulsar de nosso coração em sintonia com o Coração de Jesus nos ajuda a
recuperar o “humanismo” que estamos perdendo.
Humanizar
nosso coração para humanizar as relações.
No
sentido bíblico, “coração” é uma palavra primordial; ela nos remete ao mais
profundo e vital de nossa essência e existência. O coração designava o complexo mundo
interior do ser humano.
O coração
profundo é
o centro de nosso ser, o nosso cerne mais íntimo, o coração do coração, que não
consiste no sentimento, mas no lugar do encontro com Deus. A antropologia
bíblica considera o coração como o interior do ser humano, num sentido muito
mais lato que o das línguas latinas, no qual o coração evoca a vida afetiva.
Trata-se do centro existencial que permite à pessoa orientar-se como um todo e
plenamente em direção a Deus e ao bem.
Recordações,
pensamentos, projetos e decisões são alguns dos componentes essenciais desse
órgão vital por excelência. O que acontece no coração tem caráter decisivo. “O mistério
interior do ser humano, tanto na linguagem bíblica como no não bíblico, se
expressa com a palavra coração” (Xavier León-Dufour).
O
despertar da identidade única de cada pessoa se dá no santuário de seu
interior, que é o coração. Nele está estampada nossa imagem e semelhança divinas, pois
no coração está gravada a imagem divina oculta. S. Serafim de Sarov o denomina “o altar de
Deus”.
“O sentido de nossa vida não é outro que a busca deste lugar do
coração” (Olivier
Clément). Ou seja, no centro de nós mesmos, unificando nosso ser, está o coração, o “cofre” onde se guarda/oculta o que
é mais nobre e rico em nós. Por isso Jesus dava tanta importância ao coração: “a boca
fala daquilo que está cheio o coração” (Lc. 6,45); “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt. 5,8).
O coração é uma dessas palavras nas quais toda
a multiplicidade se torna uno.
É
ele que possibilita a pessoa chegar à unificação de todo o seu ser, integrando
a corporalidade, a afetividade, a sensibilidade, a razão..., para além da bela
expressão de Pascal: “O coração tem razões que a razão não conhece”. O fato é que há “olhos no
coração” que permitem compreender o que nem os olhos do corpo, nem a razão são
capazes de perceber: “Rogo a Deus que ilumine os olhos dos
vossos corações, para que
conheçais qual é a esperança à qual fostes chamados” (Ef. 1,18).
Enfim,
o coração do ser humano é a própria fonte de sua personalidade consciente,
inteligente e livre. É o lugar de suas escolhas decisivas, fonte das
bem-aventuranças, santuário da ação misteriosa de Deus e do encontro com Ele.
Por isso, chegar ao lugar do coração é dom de Deus.
Texto bíblico: Mt 11,25-30
Na oração: Talvez o resumo mais belo do que gera a oração
do coração seja o que disse S. João Crisóstomo: “O coração
absorve o Senhor, e o Senhor absorve o coração, e os dois se fazem uno”.
A
intimidade não é fechar-se em si mesmo, mas abertura máxima. A partir do centro
do coração, o orante se abre ao coração da realidade.
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Você deixa “transparecer” seu coração na vivência cotidiana?
Pe. Adroaldo Palaoro sj
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