quarta-feira, 10 de junho de 2020
CORPUS CHRISTI: DEUS SE FAZ CORPO EM NOSSOS CORPOS
“Quem come a minha carne e
bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele” (Jo. 6,56)
O cristianismo foi muitas vezes compreendido
como uma religião do “espírito” contra a “carne”, uma religião do desprezo do
corpo e inimiga de tudo o que se refere à dimensão corporal. Se isso é verdade,
vai totalmente contra à primeira inspiração de Jesus e da Igreja, que
proclamaram e continuam proclamando uma religião do “corpo”, ou seja, do Deus Encarnado na história (na carne) dos homens e mulheres.
É
isso que nos revela a festa de “Corpus Christi”;. é a festa que recolhe todas as
festas cristãs e as condensa na “carne” do Corpo de Jesus, com sua riqueza de sentidos e significados.
“Tocar a carne de Cristo” implica tocar e acolher nossa própria “carne”, ou seja, o corpo como lugar
onde Deus faz sua morada. Assim vamos buscando compreender o que é a
Encarnação.
O
próprio Deus se fez corpo, no corpo de uma mulher: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.
A Encarnação foi o caminho que a Trindade
escolheu para se aproximar da humanidade e fazer história conosco. Nosso corpo humano, feito de barro – vaso frágil e quebradiço
– tornou-se o lugar privilegiado da chegada e da revelação do amor trinitário.
“Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que
habita em vós?” (1Cor,
6,19)
O
nosso corpo é o “templo” santo e santificado, onde Deus Trino faz sua morada.
O corpo é presença e linguagem
- tudo
nele fala: fala o rosto, falam os olhos, falam os movimentos e as posturas,
falam os gestos, acompanhando, reforçando e expressando a intenção íntima.
Celebrar
“Corpus Christi” é “cristificar” nossos corpos.
Cresce
cada vez mais a consciência de que não “temos um corpo” que nos aprisiona, mas
que somos a corporeidade, esse sistema complexo de matéria e energia, fonte de
sensações, de expansão, de prazer...
O corpo é a primeira condição de
possibilidade de nosso “ser no mundo”, único modo disponível para
relacionar-nos com a natureza, com os outros e com o que nos transcende. Em
definitiva, único modo de ser, e de sermos humanos.
Somos
corpo que vibra e pulsa, que necessita do abraço e do olhar de outros corpos,
do calor de outras peles. E ali encontramos Deus, pois Ele quis fazer-se corpo
e sangue, para acariciar com nossos braços, para olhar com os nossos olhos,
para respirar com os nossos pulmões, para amar com nossos corações, para fazer
ardentes nossas entranhas compassivas... Aqui, nas transformações do corpo, Ele
se faz presente.
Diante
do Corpo de Cristo, nosso corpo se plenifica na comunhão com outros corpos, com Deus e com o corpo
da natureza. Em Jesus, Deus se revelou encarnado na história e, por sua atuação,
morte e ressurreição, deixou transparecer que fez do universo seu Corpo. A presença real de Jesus, no
pão e vinho da Eucaristia, nos desperta a reconhecê-Lo presente no coração do Cosmos e da História.
Nosso
humilde corpo é parte da Criação inteira e nosso bem-estar faz sorrir a
natureza.
O
evangelho deste domingo nos revela que a união ativa do(a) discípulo(a) com
Jesus expressa-se, agora, mediante a metáfora do “comer” e do “beber”. A adesão
a Jesus é adesão de amor.
Jesus
quis permanecer entre nós de modo diferente. Não aceitou ser peça de museu, nem
fonte de estudos eruditos. Quis permanecer vivo. Escolheu a forma convivial da
refeição. É em comunidade que se celebra sua memória. O pão do cotidiano, o
vinho da festa; o pão do alimento, o vinho da entrega radical.
O pão e o vinho, comido e bebido, se transformam
em nós; o corpo de Cristo e seu sangue nos transformam n’Ele. Pelo pão e vinho,
vivemos e nos alegramos. Pelo corpo e sangue de Jesus, Ele vive em nós e nos
alegra. Comer do seu corpo e beber do seu sangue significa “ingerir” e fazer
nossa, sua mentalidade, suas preferências, suas opções, seu estilo de vida, sua
original maneira de viver, de pensar e de atuar...
Alimentar-nos
d’Ele é voltar ao mais puro, ao mais simples e mais autêntico de seu Evangelho;
interiorizar suas atitudes mais básicas e essenciais; acender em nós o impulso
de viver como Ele; despertar nossa consciência de discípulos(as) e
seguidores(as) para fazer d’Ele o centro de nossa vida.
Tradicionalmente,
a festa de “Corpus Christi” acontece em meio a grandes pompas e suntuosas
procissões. Belos tapetes são confeccionados nas ruas para que o cortejo,
carregando o “Corpo de Cristo”, passe por ali. Este ano, por causa da situação
pandêmica que estamos vivendo, as manifestações externas certamente não vão
ocorrer. Talvez seria uma ocasião privilegiada para repensar e re-descobrir o
verdadeiro sentido deste dia: fazer a experiência da “procissão
interna”, deixando
o “Corpo de Cristo” circular por nossos corpos, para que estes fiquem mais “cristificados”.
Todas
as nossas demonstrações de veneração e respeito para com as “espécies
consagradas do pão”, estão muito bem. Mas ajoelhar-nos diante do Santíssimo e
continuar menosprezando ou ignorando o corpo dos
irmãos
e irmãs, sobretudo dos mais sofredores e excluídos, é um escárnio.
A
última coisa que poderia ter ocorrido a Jesus era pedir que os demais seres
humanos se pusessem de joelhos diante d’Ele. Ele, sim, se ajoelhou diante de
seus discípulos para lhes lavar os pés; e, ao terminar essa tarefa de escravos,
lhes disse: “vós me chamais de Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque sou. Se
eu, o Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos
outros” (Jo
13,13). Essa
lição parece que não despertou tanto impacto em nós. É mais cômodo transformar
Jesus em “objeto” de adoração” que imitá-lo no serviço e na disponibilidade
para com todas as pessoas. É uma ofensa prostrar-se diante do Corpo Eucarístico
e distanciar-se de tantos corpos violentados que gritam: “eu quero
respirar”.
O
problema é que, com frequência, transformamos a Eucaristia num rito cultual,
tornando-se uma pesada obrigação que, se pudéssemos, tiraríamos de cima de
nossos ombros. Ela acabou se convertendo numa cerimônia rotineira, carente de
convicção e compromisso, um ritual que tranquiliza as consciências, mas não
modifica as atitudes. E, às vezes, se utiliza como ato de ostentação e pompa
solene, que fomenta a adoração e a devoção, mas não transforma nem a Igreja,
nem a sociedade.
A
Eucaristia foi, para as primeiras comunidades cristãs, o ato mais subversivo
imaginável. Os cristãos que a celebravam se sentiam comprometidos a viver o que
o sacramento significava, conscientes de que recordavam o que Jesus tinha sido
e comprometendo-se a viver como Ele viveu.
É
preciso sacudir nossa rotina e mediocridade. Não podemos comungar com Cristo na
intimidade de nosso coração sem comungar com os irmãos que sofrem. Não podemos
compartilhar o pão eucarístico ignorando a fome de milhões de seres humanos,
privados de pão e de justiça. É uma ofensa dar-nos a paz uns aos outros, sendo
canais propagadores de ódio, de preconceito e intolerância. É um engano
manifestar que estamos em comunhão junto à mesa quando, na realidade, somos
mediadores da “cultura da indiferença”.
Corpus Christi é um chamado urgente para que nos prostremos diante do
Cristo, humilde e caminhante, que passa continuamente diante de nós; passa
vestido de mendigo, desempregado, enfermo, faminto, solitário, abandonado...,
que nos convida a viver a Eucaristia, não como milagre nem como mistério, mas
como lugar de encontro com os mais necessitados.
Está
bem que passem procissões com o Pão Eucarístico por nossas ruas, com toda
solenidade e pompa. Mas, que pensará Jesus ao passar diante das casas onde hoje
falta o pão? Que pensará Jesus ao passar diante de crianças que tem fome? Que
pensará Jesus ao passar diante de homens e mulheres que o acompanham com o
estômago vazio, sendo Ele mesmo o “verdadeiro pão”? Quê pensará Jesus ao ser
levado nos “andores” e carros alegóricos por pessoas que não conhecem a fome, enquanto
à margem aplaudem os famintos?...
Texto bíblico: Jo 6,51-58
Na oração: Nosso corpo é tocado pela encarnação de Jesus. E lembre-se de que Deus
conhece nossa estrutura. Ele sabe de que barro somos feitos.
Reze
sua humanidade, seu corpo de homem ou mulher. Leve para sua oração os desafios do cotidiano,
os imprevistos da vida. Seja humano diante de Deus, deixe seu corpo falar a Deus.
Reze
com seu corpo. E agradecido(a) bendiga sempre o Senhor.
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
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