A crise da modernidade favorece uma
espiritualidade adaptada às necessidades psicossociais de evasão, da falta de
sentido, de fuga da realidade conflitiva
Por Frei Betto
O que caracteriza os
tempos pós-modernos em que vivemos, segundo o filósofo Jean-François Lyotard, é
a falta de resposta para a questão do sentido da existência. Por enquanto,
estamos na zona nebulosa da terceira margem do rio.
A modernidade agoniza,
solapada por esse buraco aberto no centro do coração pela cultura da
abundância. Nunca a felicidade foi tão insistentemente ofertada. Está ao
alcance da mão, ali na prateleira, na loja da esquina, publicitada em todo tipo
de mercadorias.
No entanto, a alma se
dilacera, seja pela frustração de não dispor de meios para alcançá-la; seja por
angariar os produtos do fascinante mundo do consumismo e descobrir que, ainda
assim, o espírito não se sacia...
A publicidade repete
incessantemente que todos temos a obrigação de ser felizes, de vencer, de se
destacar do comum dos mortais. Se não conseguem, sobre esses recai o sentimento
de culpa por seu fracasso. Resta-lhes, porém, uma esperança: o caráter
miraculoso da fé. Jesus é a solução de todos os problemas. Inútil procurá-la
nos sindicatos, nos partidos, na mobilização da sociedade.
Vivemos num universo
fragmentado por múltiplas vozes, frente a um horizonte desprovido de absolutos,
com a nossa própria imagem mil vezes distorcida no jogo de espelhos. Engolida
pelo vácuo pós-moderno, a religião tende a reduzir-se à esfera do privado;
olvida sua função social; ampara-se no mágico; desencanta-se na autoajuda
imediata.
Nesse mundo
secularizado, a religião perde espaço público, devido à racionalidade
tecnocientífica, ao pluralismo de cosmovisões, à racionalidade econômica.
Sobretudo, deixa de ser a única provedora de sentido. Seu lugar é ocupado pelo
oráculo poderoso da mídia; os dogmas inquestionáveis do mercado; o amplo leque
de propostas esotéricas.
A crise da modernidade
favorece uma espiritualidade adaptada às necessidades psicossociais de evasão,
da falta de sentido, de fuga da realidade conflitiva. Espiritualidade
impregnada de orientalismo, de tradições religiosas egocêntricas, ou seja,
centradas no eu, e não no outro, capazes de livrar o indivíduo da
conflitividade e da responsabilidade sociais.
Agora, manipula-se o
sagrado, submetendo-o aos caprichos humanos. O sobrenatural se curva às
necessidades naturais. A solução dos problemas da Terra reside no Céu. De lá
derivam a prosperidade, a cura, o alívio. As dificuldades pessoais e sociais
devem ser enfrentadas, não pela política, mas pela autoajuda, a meditação, a
prática de ritos, as técnicas psicoespirituais.
Reduzem-se, assim, a
dimensão social do Evangelho e a opção pelos pobres. O sagrado passa ser
ferramenta de poder, para controle de corações e mentes, e também do espaço
político. O Bem identifica-se com a minha crença religiosa. Bin Laden exigia
que o Ocidente se convertesse à sua fé, não ao bem, à justiça, ao amor.
Essa religião, mais
voltada à sua dilatação patrimonial que ao aprimoramento do processo
civilizatório, evita criticar o poder político para, assim, obter dele
benefícios: concessão de rádio e TV etc. Ajusta a sua mensagem a cada grupos
social que se pretende alcançar.
Sua ideologia consiste
em negar toda ideologia. Assim, sacraliza e fortalece o sistema cujo
valor supremo, o capital, se sobrepõe aos direitos humanos. Como observa o
teólogo José Comblin, as forças que hoje dominam são infinitamente superiores
às das ditaduras militares.
Aos pobres, excluídos
deste mundo, resta se entregarem às promessas de que serão incluídos, cobertos de
bênçãos, no outro mundo que se descortina com a morte. Frente a essa “teologia”
fica a impressão de que a encarnação de Deus em Jesus foi um equívoco. E que o
próprio Deus mostra-se incapaz de evitar que sua Criação seja dominada pelas
forças do mal.
Felizmente, nas
Comunidades Eclesiais de Base, nas pastorais sociais, nos grupos de leitura
popular da Bíblia, fortalece-se a espiritualidade de inserção evangélica. A que
nos induz a ser fermento na massa e crê na palavra de Jesus, de que ele veio
“para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10).
Fomos criados para ser
felizes neste mundo. Se há dor e injustiça, não são castigos divinos, resultam
da obra humana e por ela devem ser erradicadas. Como diz Guimarães Rosa, “o que
Deus quer ver é a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre e amar, no meio
da tristeza. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas cair não prejudica demais.
A gente levanta, a gente sobe, a gente volta.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário