quarta-feira, 17 de junho de 2020

JOSÉ ORNELAS NOVO PRESIDENTE DA CEP: BISPOS ESCOLHEM RENOVAÇÃO ABSOLUTA PARA A LIDERANÇA E MANUTENÇÃO NO RESTO


José Ornelas, o novo presidente da CEP: ter uma atitude de diálogo da Igreja com a sociedade de que faz parte é uma das suas prioridades. Foto © Paulo Rocha/Agência Ecclesia


Quis estudar Bíblia, a sua “raiz”, para aprender a “sujar as mãos com a realidade de cada dia. Já se manifestou ao lado dos estivadores de Setúbal ou dos moradores do bairro da Jamaica no apelo a uma vida com condições mais dignas. Pela primeira vez, um bispo de Setúbal foi eleito para presidente da Conferência Episcopal. E quer uma atitude de “diálogo com a sociedade” de que a Igreja Católica faz parte.

O bispo de Setúbal, José Ornelas, 66 anos, foi eleito na manhã desta terça-feira, 16 de Junho, para o cargo de presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), substituindo o patriarca de Lisboa. Virgílio Antunes, 58 anos, bispo de Coimbra, foi eleito para vice-presidente. Ambos integravam já o conselho permanente da CEP, como vogais, no mandato que agora cessou.

A escolha dos dois lugares de liderança é inovadora, já que é a primeira vez que neles não está representada nenhuma das principais dioceses do país (Lisboa, Porto, Braga, Leiria-Fátima e Évora, esta última por ser sede “metropolita”, ou seja, funcionando como tribunal de recurso às dioceses do Sul em casos de justiça canónica). É também a primeira vez que o presidente da CEP é um bispo oriundo de uma congregação religiosa – os Sacerdotes do Coração de Jesus, ou dehonianos.

Nas suas primeiras declarações, o agora presidente da CEP afirmou, à agência Ecclesia, que os bispos devem ser o “primeiro sinal da união da Igreja em Portugal” e que pretende promover uma atitude de “diálogo com a sociedade” de que a Igreja Católica faz parte. Acrescentou que os bispos estão unidos nos “temas fundamentais”, mas admitiu que é necessário “coordenar” as atividades conjuntas “mais solidariamente”.

Se a eleição dos dois lugares de topo trouxe novidades absolutas, já nas restantes votações os 28 bispos presentes e votantes decidiram manter o essencial: no conselho permanente, a escolha recaiu sobre nomes óbvios (à excepção de um); nas sete comissões sectoriais mudaram apenas os dois presidentes que tinham cumprido dois mandatos seguidos (limite máximo permitido pelos estatutos).

Veja-se ao pormenor: para vogais do conselho permanente, além do patriarca de Lisboa que tem lugar por inerência, foram escolhidos os bispos do Porto, Leiria-Fátima, Évora e Bragança. Ou seja, os responsáveis da segunda diocese do país (primeira em população), da “capital” religiosa (Leiria) e da sede metropolita do Sul. O único “intruso” é o bispo de Bragança, José Cordeiro, que já era vogal no mandato anterior.

Os desequilíbrios regionais do país sentem-se também na configuração hierárquica da Igreja: as dioceses com mais “peso” são fundamentalmente as do litoral entre Braga e Setúbal.

Numa altura em que se prepara a sucessão do arcebispo de Braga, José Cordeiro e Virgílio Antunes são dois dos nomes que têm sido referidos como prováveis candidatos ao lugar. A eleição de ambos para o conselho permanente confirma esse sinal – com a ligeira “vantagem” para D. Virgílio, votado para vice-presidente (sendo que não são os restantes bispos que escolhem o futuro arcebispo, mas têm uma palavra a dizer nesse processo).

 

José Ornelas, nesta terça-feira em Fátima: episcopado precisa de se coordenar “mais solidariamente”. Foto © Paulo Rocha/Agência Ecclesia

Comissões sectoriais: (quase) tudo na mesma

Precisamente o bispo de Bragança foi um dos que teve de sair da comissão a que presidia (Liturgia e Espiritualidade, já que é especializado nessa área), tendo sido eleito, para o seu lugar, Anacleto Oliveira, bispo de Viana do Castelo, que está prestes a completar 74 anos. Para a outra comissão que tinha de mudar de presidente (Missão e Nova Evangelização) foi escolhido Armando Esteves, auxiliar do Porto e do bispo que deixou o cargo (Manuel Linda). Além de ser o único auxiliar a ter sido eleito, D. Armando pode ter aqui um lugar condizente com as suas perspectivas alinhadas pelo Papa Francisco.

Nas restantes comissões, mantêm-se por mais três anos os seus presidentes: António Moiteiro (Aveiro), na Educação Cristã e Doutrina da Fé; José Traquina (Santarém), na Pastoral Social e Mobilidade Humana; Joaquim Mendes (auxiliar de Lisboa), no Laicado e Família; António Augusto Azevedo (Vila Real) nas Vocações e Ministérios; e João Lavrador (Angra) na Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais.

Na assembleia plenária – prevista para Abril e adiada por causa do estado de emergência que vigorava no país – foram debatidas a situação e as perspectivas do país a nível social, económico e eclesial, neste tempo pós-pandemia. A CEP elaborou um documento que pretende ser um “contributo” da Igreja Católica em Portugal para o “diálogo social” a partir da emergência que se vive.

“Temos de construir um mundo que não seja totalmente igual. Que utilize todas as riquezas que temos, mas também seja capaz de sonhar mundos novos e que aprendamos dos esforços todos que se fizeram neste tempo para construir uma humanidade melhor para todos”, disse a propósito, D. José Ornelas.

Manifestando-se surpreendido pela votação, com “receio” pelo cargo e pela necessidade de articular o governo da diocese com o novo lugar e ainda grato aos seus antecessores na liderança da CEP, o bispo Ornelas manifesta-se convicto de que o actual momento é determinante para “criar perspectivas novas para um mundo renovado e ao mesmo tempo integrado em todas as suas dimensões”.

Bispo desde 2015, nomeado para Setúbal, a sua escolha teve a intervenção pessoal do Papa, que o chamou quando José Ornelas Carvalho se preparava para deixar o lugar de responsável mundial pelos dehonianos e partir em missão para Angola.

“Setúbal é terra de missão”, disse-lhe o Papa, trocando-lhe as voltas. José Ornelas já mostrou querer cumprir o voto do Papa, tendo aparecido a chamar a atenção para problemas sociais como os dos estivadores do porto de Setúbal, em Novembro de 2018, ou do racismo e da pobreza, como mais recentemente em relação ao bairro da Jamaica (Seixal). “O racismo, a injustiça e a exclusão” não têm lugar na Igreja Católica, disse na ocasião, considerando que a situação naquele bairro é “uma vergonha para o país”, pois as pessoas que ali moram precisam de “uma habitação digna”.

 

“Sujar as mãos” e trazer o sonho à vida

Nascido a 5 de janeiro de 1954, no Porto da Cruz (Madeira), José Ornelas entrou nos dehonianos (congregação fundada no século XIX pelo padre francês Léon Déhon) e foi ordenado padre na sua terra natal, em 1981. Especializou-se depois em Ciências Bíblicas, tendo lecionado na Universidade Católica Portuguesa durante 15 anos, em dois períodos entre 1983 e 2003.

Em 2000 passou a dirigir os destinos da congregação em Portugal e, dois anos depois, foi eleito para superior geral dos dehonianos, passando a residir em Roma até 2015, quando foi escolhido como terceiro bispo de Setúbal. Seguia a peugada de D. Manuel Martins, que ficara conhecido pela sua capacidade de intervenção social, junto dos mais pobres e desfavorecidos.

Como superior dos dehonianos, uma das suas primeiras visitas foi às comunidades do Congo, no pós-guerra civil: apanhou tifo e malária ao mesmo tempo, sentiu “o sofrimento e a dificuldade de poder ajudar”. E percebeu que a fome e a miséria são realidades dramáticas “onde se toca o mais doloroso da humanidade”, como confessava numa entrevista em 2010, no Público.

Antes disso, já tinha estado em Luanda, onde viu as revoltas dos musseques, e em Moçambique, onde acompanhou a independência em 1975 e o “descalabro do sonho, os campos de concentração, as nacionalizações” que se lhe seguiu.

Para não se desiludir por completo, foi estudar Bíblia para Roma, em 1976. Queria aprender a “sujar as mãos com a realidade de cada dia e a querer que o sonho inspire a vida”. A Bíblia, que considera a sua “raiz”, não é “um livro escrito no passado, é um confronto da alma humana com Deus”, dizia na entrevista citada.

Em Roma, onde pensava não voltar a viver depois de ter feito o curso, apreciava o carácter “internacional e multicolor” da cidade, mas lidava mais dificilmente com “a impressão de ‘nadar’ em água benta.” E deixava-se espantar com o “espaço livre e a amplitude da Basílica de São Paulo”, mas ainda mais com o Panteão, “para deixar a emoção estética” dominá-lo.”

Acerca da perspectiva comunitária da vida da Igreja, acrescentava, a partir da sua experiência numa comunidade religiosa: “Temos de mudar. Um dos grandes temas da vida religiosa é a comunhão. As comunidades nunca serão perfeitas, mas temos que fazer da vida comunitária o centro do nosso estilo de vida.”

José Ornelas, o novo presidente da CEP: ter uma atitude de diálogo da Igreja com a sociedade de que faz parte é uma das suas prioridades. Foto © Paulo Rocha/Agência Ecclesia

 

 



Fonte:setemargens.com

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