sexta-feira, 5 de junho de 2020
'NÃO POSSO RESPIRAR'
Morte
de Floyd é expressão extrema de um sufocamento social que a precede e nela
resulta
Foram as últimas
palavras de George Floyd: “Não posso respirar”. Eu também. Não consigo respirar
neste Brasil (des)governado por militares que ameaçam as instituições
democráticas e exaltam o golpe de Estado de 1964, que implantou 21 anos de
ditadura; elogiam torturadores e milicianos; acertam o “toma lá, dá cá” com
notórios corruptos do Centrão; plagiam ostensivamente os nazistas; manipulam
símbolos judaicos; tramam, em reuniões ministeriais, agir ao arrepio da lei;
proferem palavrões em reuniões oficiais, como se estivessem num antro de
facínoras; debocham de quem observa os protocolos de prevenção à pandemia e
saem às ruas, indiferentes aos 30 mil mortos e suas famílias, como a celebrar
tamanha letalidade.
“Não posso respirar”
quando vejo a democracia asfixiada; a Polícia Militar proteger neofascistas e
atacar quem defende a democracia; o presidente mais interessado em liberar
armas e munições que recursos para combater a pandemia; o ministério da
Educação dirigido por um semianalfabeto que ameaça reprisar a “noite dos
cristais” dos nazistas, proclama odiar povos indígenas e propõe prender os
“vagabundos” do Supremo Tribunal Federal.
“Não posso respirar” ao
ver os comandantes das Forças Armadas calados diante de um presidente
destemperado que não esconde ter como prioridade de governo a sua proteção e a
de seus filhos, todos suspeitos de graves crimes e cumplicidade com assassinos
profissionais.
“Não posso respirar”
diante da inércia dos partidos ditos progressistas, enquanto a sociedade civil
se mobiliza em contundentes manifestos de indignação e pela defesa da
democracia.
“Não posso respirar”
diante desse empresariado que, de olho nos lucros e indiferente às vítimas da
pandemia, pressiona para a abertura imediata de seus negócios, enquanto os
leitos hospitalares estão lotados e covas rasas se multiplicam nos cemitérios
quais gengivas desdentadas de Tânatos.
“Não posso respirar”
quando, no Brasil e nos EUA, cidadãos são agredidos, presos, torturados e
assassinados pelo “crime” de serem negros e, portanto, “suspeitos”. Falta-me ar
ao ver João Pedro, um garoto de 14 anos, perder a vida dentro de casa ao levar
um tiro de fuzil pelas costas, enquanto brincava com amigos. Ou entregadores de
encomendas serem assassinados por policiais que nos consideram imbecis ao
tentar justificar a morte de tantos civis desarmados.
“Não posso respirar” ao
pensar que o bárbaro crime cometido contra George Floyd se repete todos os dias
e permanecem impunes por não haver ali uma câmera capaz de flagrar assassinatos
semelhantes. Ou ao ver Trump, do alto de sua arrogância, reagir aos protestos
antirracistas ameaçando calar os manifestantes com o indiciamento deles como
terroristas e a intervenção de tropas do exército.
Como oxigenar minha
cidadania, meu espírito democrático, minha tolerância, ao me ver cercado por
mimólogos da Ku Klux Klan; generais improvisados em ministros da Saúde em plena
tragédia sanitária; manifestantes infringirem, impunes, a lei de segurança
nacional; e a Bolsa de Valores subir, enquanto milhares de caixões baixam nas
tumbas que recebem as vítimas da pandemia?
Preciso respirar! Não
deixar que sufoquem a sociedade civil, a mídia, a liberdade de expressão, a
arte, os direitos civis, o futuro dessa geração condenada a viver esse presente
nefasto.
Respiro, apesar de tudo,
quando leio o que o estilista Marc Jacobs postou no Instagram depois de ter uma
de suas lojas destruída pelos protestos em Los Angeles: “Nunca deixe que eles
te convençam que vidro quebrado ou saque é violência. Fome é violência. Morar
na rua é violência. Guerra é violência. Jogar bomba nas pessoas é violência.
Racismo é violência. Supremacia branca é violência. Nenhum cuidado de saúde é
violência. Pobreza é violência. Contaminar fontes de água para obter lucro é
violência. Uma propriedade pode ser recuperada, vidas não.”
Faço meus os versos de
Cora Coralina: quero “mais esperança nos meus passos do que tristeza nos meus
ombros”.
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