sábado, 6 de junho de 2020

'NOS TIRARAM A MISSA': O HINO DO MATERIALISMO CATÓLICO


Papa Francisco durante missa transmitida ao vivo na
 casa Santa Marta, em março deste ano (Vatican Media)
Uma reflexão sobre a suspensão das missas públicas em tempo de pandemia
A Itália reabre aos poucos. O país que enfrentou uma das maiores crises da sua história, se reergue a partir da força do trabalho conjunto e da união dos seus cidadãos. Não que os embates públicos cessaram, haja visto que a conjuntura política italiana é bastante “explosiva”, como sabemos. Mas os italianos assumiram para si a situação do país. E foi bonito contemplar tudo isso de perto.
Apesar da nação ter colhido os frutos amargos de um negacionismo inicial, o andrà tutto bene - ficará tudo bem - não foi só um slogan. Se trabalhou duro justamente para que, hoje, pudéssemos dizer essa frase com toda a força. Para se ter uma ideia, Roma registrou somente 6 novos casos nesta semana. E isso se tornou mais uma prova irrefutável que o confinamento em zonas de risco, pelo menos numa primeira fase, faz-se necessário. Sem contar que é a orientação da ciência.
Os católicos in prima linea - como se diz aqui -, responderam prontamente às duras restrições impostas pelo governo, que bloqueou o país no início de março - sem choro nem reza. Alguns pequenos grupos - pouco expressivos, diga-se de passagem - se opuseram à suspensão das missas públicas. Porém, não tinha como fechar-se numa “bolha” e ficar indiferente às milhares de mortes que se registravam todos os dias. Dada a gravidade da situação, concluiu-se que os bispos “não privaram as pessoas da fé”, como alguns gostam de dizer no Brasil. Ao contrário: demonstraram que uma fé madura por vezes impõe sacrifícios em vista de um bem maior. Se na própria Itália cogita-se que o vírus se espalhou rapidamente por causa da vida social agitada dos italianos - a “movida”, como eles dizem -, seria incoerente permitir que as grandes basílicas do país, por exemplo, continuassem a reunir multidões durante suas celebrações.
Estamos diante de um mal desconhecido, que extermina idosos em alguns lugares e em outros chega a matar crianças. A Igreja, que sempre reiterou “caminhar lado a lado com a humanidade”, é chamada justamente a dar respostas concretas em tempo de crise. As pessoas não aguentam mais esse “catolicismo de corte” e esse revival renascentista autorreferencial. Querem transformar a igreja numa fortaleza cujo acesso é permitido somente aos privilegiados e inalcançável ao ponto de tornar-se alheia ao sofrimento de uma plebe que morre.
Querem materializar até a missa. É como se as pessoas estivessem mais preocupadas com o preceito que com o mistério. Independente do local onde esse santo sacrifício seja celebrado, é instrumento de purificação para todo o corpo, que é a igreja. E não precisa estudar teologia para saber disso. Sem contar que se o líder máximo do catolicismo - no caso, o papa -, concedeu até indulgência plenária mesmo sem a participação física aos sacramentos, é mais um motivo para considerarmos que vivemos um tempo de graça. Ubi Petrus, ibi ecclesia - Onde está Pedro está a Igreja -, já dizia Santo Ambrósio.
A eucaristia não é o “troféu” para os “homens de bem”, mas sustento e alimento para todos; até para quem está impedido de recebê-la. A eucaristia não pertence a “meu grupo de pios católicos tridentinos” e só tem sentido quando se faz em comunhão - com o papa e com os bispos, inclusive. E se essa comunhão foi “virtual” por um tempo, a eucaristia operou com toda a sua eficácia. Não nos “tiraram a missa”, como dizia aquela campanha imbecil que fizeram. Simplesmente a celebramos de outra forma, dadas as circunstâncias. E o que fizemos com esse período de prova? Pensamos nas comunidades isoladas da Amazônia que têm missa somente uma vez ao ano? Ou nos pobres que sequer puderam acompanhá-la pela internet?
O fato de ficar sem a celebração por um tempo demonstrou o quanto somos egoístas e centrados na materialidade da fé, não no “Espírito Santo que sopra onde quer”, como dizem as escrituras. Pararam para pensar que grandes santos como Francisco de Assis ou Santa Teresa D'Ávila, respectivamente o reformador medieval do século XIII e a “donzela da reforma do carmelo” em fase renascentista, não tinham acesso à missa diária? E, pelo jeito, colheram ocasião não só para santificar a própria vida, mas a de todos que estavam ao redor. O que fizemos com essa ausência de missas, além desta histeria infantil nas redes sociais?
 Muitos têm perdido a oportunidade de transformar a própria casa numa domus ecclesia, como os primeiros cristãos. Onde estão os estudos bíblicos e os rosários em família durante essa quarentena? As famílias se reuniram para assistir à missa pela televisão? Quais novas práticas de devoção foram reforçadas nessa fase? Ao invés disso, o que vemos é um bando de gente inflamada nas redes sociais desrespeitando bispos e autoridades religiosas que são, além de tudo, coerentes em relação à própria missão de pastores neste período de crise. A eucaristia é carne e somos chamados a encarná-la na nossa vida, não a fazer dela um “patrimônio” estático que cabe dentro da minha visão e só serve para amaciar o meu ego de “super católico”. Essa sim, talvez, seja a maior heresia.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.

Fonte:domtotal.com 


2 comentários:

  1. Muitas pessoas que vão a missa uma vez por ano nos povoados fazem gestos de amor e partilha que muitos que quase não saem da igreja e gostam de adoracoes muitas vezes são insensíveis e egoístas se escondendo nas igrejas.

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  2. E vergonhoso este tipo de gente se dizendo católicos e nao respeitar o papa e os bispos

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