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Homem
anda de bicicleta até posto de controle da polícia depois
que a cidade sofreu uma noite de protestos e
violência em
29 de maio de 2020 em Minneapolis, Minnesota
(Scott Olson/ AFP) |
Assassinatos de
negros por policiais brancos é uma constante, mas a cada um que ocorre há a
esperança de que desta vez os resultados vão fazer diferença. Será?
Homem anda de bicicleta até posto de controle da polícia
depois que a cidade sofreu uma noite de protestos e violência em 29 de maio de
2020 em Minneapolis, Minnesota (Scott Olson/ AFP)
Comecemos
pelos fatos: na segunda-feira (25) à tarde, na cidade de Minneapolis (estado de
Minnesota, EUA), George Floyd, um homem negro de 60 anos, desarmado e algemado,
foi sufocado até a morte por um policial branco. Deitado no asfalto de barriga
para baixo, algemado nas costas – uma posição que, só por si, dificulta a
respiração – durante cerca de 7min, o policial Derek Chauvin apertou seu
pescoço com o joelho, enquanto falava com os três colegas presentes. Floyd
implorava que não conseguia respirar, sem que os quatro se importassem. Nem o
fato de a cena estar sendo por várias testemunhas e gravada, levou-os a mudar
de atitude.
Uma
ambulância levou Floyd para o hospital, onde foi dado como morto depois de
procedimentos para o reanimar. Não se sabe o que levou os agentes a manietar
Floyd, mas as pessoas que o conhecem, entrevistadas desde então, são unânimes
em afirmar que era um homem cordial, trabalhador, que certamente não vendia
droga ou a fazia algo ilegal. A patrulha tinha sido chamada porque um
comerciante telefonou dizendo que achava que Floyd estava passando uma nota
falsa. Achava, não tinha a certeza. Um vídeo de vigilância da rua o mostra
sendo levado pelos agentes, sem protestar. Minutos depois, temos a gravação do
celular duma testemunha com Floyd já manietado no chão.
Terça-feira,
o chefe da policia de Minneapolis, Medaria Arradondo, que é negro, exonerou
sumariamente os quatro agentes. O presidente da Câmara, Jacob Frey, que é
branco, deu uma conferência de imprensa num tom fortemente emocional, em que
esclareceu que o policial não foi treinado para manietar um suspeito daquela
maneira, antes pelo contrário, é um procedimento proibido, e que se seguirá uma
investigação e, quase com certeza, os agentes serão indiciados por homicídio.
Estas
atitudes das autoridades não impediram milhares de manifestantes, brancos e
negros, novos e velhos, de saírem para as ruas provocar o policial, partir
montras, incendiar edifícios e gritar: “Não consigo respirar!”, as últimas
palavras de Floyd e, também, uma analogia com sensação geral que os negros têm
em relação à sua condição.
Até
agora, não há sinais da agitação acalmar, antes pelo contrário; o policial já
passou dos gases lacrimogêneos para as balas de borracha. Em Memphis e Los
Angeles também houve protestos. A 3ª Esquadra, a que pertenciam os quatro agentes,
foi incendiada, o que levou o governador do Minnesota, Tim Walz, a convocar a
Guarda Nacional.
Esta
situação não é inédita nem sequer pelo fato de ter sido gravada; os
afro-americanos (essa é a expressão legal nos EUA) são sistematicamente
discriminados pelas forças policiais em muitas cidades. Em Minneapolis, por
exemplo, são 20% da população, mas nos últimos 10 anos estiveram envolvidos em
60% das ocorrências violentas com a policial. E só 1% desses incidentes levaram
a sanções contra os agentes. Apesar de o policial de Minneapolis ser
notoriamente racista, não é a única.
Em
2014, em Ferguson, um miúdo de 18 anos, Michael Brown, foi morto a tiro por se
recusar a sair do meio da rua, segundo testemunhas. Estava desarmado e com as
mãos na cabeça quando foi abatido. Os policiais não foram acusados.
Em
Staten Island, em 2015, Eric Gardner, de 43 anos, que vendia maços de cigarros
sem o selo do fisco, foi asfixiado por um policial, mais ou menos da mesma
maneira: desarmado, algemado e a pedir por amor de Deus que o deixassem
respirar. Também nada aconteceu aos policiais.
No
mesmo ano e também em Minneapolis, Jamar Clark levou um tiro fatal. Segundo a
polícia e os paramédicos, porque resistia à detenção e tentou tirar a arma dum
deles; segundo várias testemunhas, foi atingido quando estava deitado no chão e
algemado. Dessa vez, houve duas semanas de protestos e o caso fez com que o
presidente da Câmara perdesse as eleições seguintes.
Este
ano, em Los Angeles, Anthony Yssac, de 26 anos, foi baleado repetidamente. Esse,
por acaso, estava armado, mas não mostrou a arma aos que o abateram.
Em
2015, dois agentes de Los Angeles mataram um homem negro, deficiente mental,
com 16 tiros. Foram absolvidos. Aliás, na quase totalidade dos incidentes, um
pouco por todo o país, os agentes não são incriminados, ou, quando são, não
chegam a condenados. Um bom exemplo é o de Derek Chauvin, o que matou George
Floyd. A sua folha de serviço mostra 18 incidentes violentos, e apenas duas
“admoestações”.
Vamos
ficar por aqui, deixando de fora dezenas de casos semelhantes. Levaria meses a
procurá-los todos e seria cansativo ler a mesma história incontáveis vezes,
mudando apenas os nomes e os locais. O caso mais antigo que encontramos, numa
pesquisa rápida, é de 1962, mas muitos outros ocorrerão. Alguns passam quase
despercebidos, outros, por uma razão ou por outra, provocam dias de protestos,
amiúde violentos.
Esta
discriminação, nacional, também se manifesta ao contrário. No ano passado,
ainda em Minneapolis, a australiana Justine Ruszczyk passeava no seu jardim,
descalça e de pijama, quando ouviu ruídos suspeitos. Ligou para o 911 e quem
apareceu foi o agente Mohamed Noor. Não se conseguiu perceber exatamente a
sequência de acontecimentos, mas Noor acabou por matar Justine com um único
tiro. Desta vez, o julgamento foi rápido e o policial condenado à prisão
efetiva. Acontece que Justine era branca e loira e Noor negro, de origem
somali.
Há
depois os milhares de incidentes em que afro-americanos são achincalhados e
sovados por agentes fardados, com desculpa ou sem ela. A questão não se resolve
com leis; o que não faltam são leis, federais, estaduais e municipais que
criminalizam estes comportamentos.
O que
há, é uma cultura duplamente perigosa.
Por
um lado, o racismo, evidente. Discute-se até à exaustão se os negros são
perseguidos por serem criminosos (o ponto de vista da “direita”) ou se é a
discriminação que os marginaliza (o ponto de vista da esquerda). Enquanto se
discutem as razões, a situação no terreno não muda. O fato é que, em 2017, os
afro-americanos, 12% da população, são 33% dos encarcerados.
Por
outro lado, a proliferação indiscriminada das armas. Segundo uma estatística,
nos Estados Unidos há 120,5 armas para cada 100 pessoas; 393,34 milhões no
total, em 2020. Tirando os cidadãos ordeiros que são loucos por armamento, os
caçadores, e outros casos inofensivos (digamos), ainda ficam muitas armas na
mão de marginais. Os policiais, sabendo que têm uma alta probabilidade de dar
com uma pessoa armada, andam sempre com o dedo no gatilho.
Um
exemplo: assistimos, em Nova York a uma cena sem história em que um policial
mandou para um carro com uma família branca (pai, mãe e dois filhos). Para
pedir os documentos ao condutor, o guarda seguiu o procedimento padrão: ficou
atrás da porta (não fosse o homem abri-la contra ele), com a mão sobre o coldre
da arma (caso o pai de família puxasse da sua...) Esta mentalidade de guerra
civil latente leva inevitavelmente a muitos “incidentes”.
Portanto,
voltando à questão inicial, se a morte de George Floyd e os dias de agitação
civil que estão a decorrer em Minneapolis vão mudar alguma coisa, a resposta é
evidente. Nada mais a declarar.
O jornalista José
Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do
Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status,
colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova York foi correspondente do
Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.
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