OS 'TOTALITARISMOS' COMO NEGAÇÃO RADICAL DO REINO DE DEUS
Ao lavar os pés dos discípulos, Jesus ensina que
poder é serviço (Artur Widak /NurPhoto via AFP)
Totalitarismos
invertem a lógica do poder-serviço vivida e ensinada por Jesus pela violência
da dominação do homem pelo homem
O Reino de Deus está
no centro da pregação de Jesus. A metáfora Reino dos céus no pensamento
bíblico-judaico é uma realidade dinâmico-escatológica. Quando o seu reino
chegar, Deus será o Senhor e trará a salvação para o ser humano. Com Jesus esse
Reino fez-se próximo; Deus vem, está às portas. O próprio Jesus anuncia a
proximidade do Reino de Deus (Mc 1, 15) e aponta o seu agir-no-mundo como a
irrupção dele entre nós (Mt 11, 2-5), por outro lado, ele ensina os seus
discípulos a rezarem pela vinda do Reino (Mt 6, 10). Isso mostra que
historicamente o Reinado de Deus ainda não se plenificou. Essa reserva
escatológica evita, por um lado, identificar qualquer figura humana ou
ideologia política com o Reino de Deus; e, por outro, ela não nos deixa cair no
comodismo, numa espera passiva por um “último dia”. Porque a salvação tem uma
dimensão histórica, já acontecendo no nosso “hoje”, mas não plenamente.
Quando pensamos a
relação de poder, quase sempre vem à nossa mente a dialética governante-governado,
senhor-escravo, opressor-oprimido, dominador-submisso. Nesse sentido, os
“totalitarismos” nas suas mais variadas formas seriam a evidência máxima do
poder, ou seja, da dominação total do homem pelo homem. Mas o caminho
apresentado por Jesus e o seu projeto de Reino de Deus apontam para outra
direção. Para Jesus, o verdadeiro poder não é mandar, dominar, mas servir. Por
isso diz aos seus discípulos: “Sabei que os que são considerados chefes das
nações, as dominam, e os seus grandes impõem sua autoridade. Entre vós
não seja assim. Quem quiser ser o maior, no meio de vós, seja aquele
que serve, e quem quiser ser o primeiro, no meio de vós, seja o servo de todos”
(Mc 10, 42-44). Ele mesmo se declara como um servidor da humanidade (Mc 10,
45). Nesse sentido, a autoridade, o exercício do poder, só é legítimo se estiver
em função dos outros, se for lava-pés. Tudo o que foge da lógica do
serviço é mundano e negação do Reino de Deus.
O fascínio pelo
poder-dominação é uma tentação constante no coração dos homens e mulheres. No
pecado de Adão e Eva, descrito no Gênesis, já se encontra o desejo de grandeza
e poder (cf. Gn 3, 1-7). Entre os discípulos de Jesus também reinava a tentação
de saber quem era o maior, ou seja, quem mandava mais, quem tinha
mais poder. Isso porque o poder-dominação dá status, visibilidade, sustenta o
ego ferido. Por isso, o gesto de Jesus de se inclinar e lavar os pés dos seus
discípulos é um “escândalo” para aqueles que compreendem o poder como
dominação-submissão, pois sendo Senhor e Mestre Jesus lava os pés dos seus
servos (cf. Jo 13, 1-17). Este gesto de Jesus é tão revolucionário que seus
próprios discípulos tiveram dificuldade para compreendê-lo. Mas Jesus é radical
ao afirmar: “Sereis felizes se o praticardes” (Jo 13, 17). Mas será que no
campo da política, também é possível pensar essa relação de poder-serviço?
Na polis grega,
berço da democracia, a praça pública é o lugar por excelência de fazer
política, ou seja, é o espaço público que permite, pela liberdade e pela
comunicação, o agir conjunto e, com ele, a geração do poder. Como afirma H.
Arendt, “o poder em seu sentido verdadeiro nunca pode ser possuído por apenas
um homem; o poder vem a ser misteriosamente, por assim dizer, quando quer que
homens ajam ‘em concerto’, e desaparece, não menos misteriosamente, quando quer
que o homem esteja só. A tirania, baseada na impotência de todos os homens que
estão sozinhos, é a tentativa da hybris de ser como Deus, investido
de poder individualmente, em completa solidão”.
O campo da política é
o do pensamento plural, é o pensar no lugar e na posição do outro. Não mais o
eu consigo mesmo, mas o diálogo com os outros com os quais devo chegar a um
acordo. A sua natureza é dialógica, por isso ela surge não no homem, mas
entre os homens. Desta forma, a liberdade e a espontaneidade dos diferentes
homens são pressupostos necessários para o surgimento de um espaço entre homens
onde só então se torna possível a política. Haja vista que politicamente não
existimos no singular, mas coexistimos no plural. Assim, o isolamento destrói a
capacidade política do homem, pois elimina sua faculdade de agir conjuntamente.
Observa-se que, na
modernidade, houve a inversão dos valores que deu à economia a prioridade sobre
a política. Desta forma, a política, que na democracia ateniense, ocupava o
espaço público, é expulsa cada vez mais deste em função do crescimento do
mercado e do interesse das pessoas em cuidar da vida privada. O espaço público
foi invadido pela produção e pelo consumo, e o trabalho, como fonte produtora
de riquezas passa a ser visto como a própria essência do homem. Com isso, a
política perdeu o seu ideal de liberdade e de realização de uma sociedade justa
e passou ser um conjunto de procedimentos pragmáticos para chegar ao poder e
mantê-lo. Em nome da segurança e da manutenção da ordem, restringe-se a
liberdade, reprime a espontaneidade humana e cresce a corrupção do poder pela
violência.
Em nossos dias temos
assistido uma nova onda de governos “autoritários” que acreditam mais na força
das armas do que no poder do diálogo, da ação conjunta. No Brasil, por exemplo,
temos um presidente que coloca em descrédito as instituições e que tenta
governar pela “caneta”. Um governo que censura a imprensa, que questiona a
história dos fatos, que coloca em dúvida as instituições, a ciência, que diz
que a participação da sociedade civil em Conselhos de Direitos atrapalha
governar, que quer controlar até o que o professor ensina na sala de aula, que
interfere na Polícia Federal para benefício particular, que desautoriza os
órgãos oficiais de inteligência e mantém um sistema paralelo de informação, que
mantém a propaganda política através das “fake news”... Esse governo dá sinais
claros de que não é democrático, e sim violento e despótico.
O ensinamento de Jesus
acerca do poder-serviço tem muito a nos ensinar no exercício da autoridade, não
somente dentro da Igreja, mas também na sociedade e na política. Pois quando o
poder deixa de ser serviço aos outros, e se torna dominação, imposição pela
força, já não é mais autoridade e, sim, violência. Para vencer essa ameaça da
violência contra o poder, faz-se necessário recuperar o espaço público, da ação
e do discurso, no qual os homens agem em conjunto e exercem a sua liberdade
política. Bem como, superar a ideologia da propaganda, da mentira, pela
capacidade do pensar em conjunto. Uma vez que o verdadeiro poder é fruto de uma
reflexão conjunta que visa à formação de uma vontade comum a partir da experiência
da pluralidade humana que é a condição básica da ação e do discurso, logo, da
política. Como afirma Hannah Arendt: “a forma extrema de poder é o todos contra
um, a forma extrema da violência é o um contra todos”. Neste sentido, os
“totalitarismos” são a negação radical do Reino Deus e do projeto cristão,
porque eles invertem a lógica do poder-serviço vivida e ensinada por Jesus de
Nazaré pela violência da dominação do homem pelo homem.
*Pe. Rodrigo Ferreira da Costa, SDN
é licenciado em Filosofia, bacharel em Teologia, com Especialização em formação
para Seminários e Casa de Formação. Atualmente é pároco da Paróquia de Santa
Luzia Teresina-Piauí
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