Para
o fundamentalista há sempre uma forma correta
de se falar a respeito de Deus (Ian Espinosa /
Unsplash)
Longe do rigorismo das leis, o Deus
bíblico se revela nas narrativas de um povo que tenta dizer sua relação com o
divino
É mania de todo fundamentalista religioso tentar explicar a pessoa de Deus, ajeitando-o conforme a visão de mundo que possui. Para o fundamentalista há sempre uma forma correta de se falar a respeito de Deus, bem como os termos autorizados e não autorizados a serem utilizados nos momentos de louvor, oração, refeição etc. Em outras palavras, Deus é aquele que controla, tem um padrão de qualidade e um manual de como servi-lo corretamente, que devem ser seguidos por todas as pessoas que se dizem cristãs.
Essa postura, embora
faça muito sucesso e traga uma sensação de certeza de se estar no caminho certo
às pessoas que a ela se submetem, em nada tem a ver com aquilo que o povo da
Bíblia compreendeu a respeito da pessoa de Deus.
Primeiro, a história
da relação do povo de Israel com Deus, na maior parte do texto bíblico, foi
exposta de uma maneira narrativa. Assim, para o povo bíblico era muito claro
que o conteúdo da mensagem era muito mais importante do que sua forma, sendo o
ensinamento de Javé o ponto importante a ser guardado. Somente muito tempo
depois que tal ensinamento narrado foi transformado em leis rígidas pela classe
religiosa do judaísmo, gerando a ideia de que seria praticamente impossível
cumprir os 613 mandamentos exigidos por Deus registrados nos livros de Moisés.
Não é de se espantar,
então, porque Jesus fora considerado um herege e blasfemo pelas autoridades
religiosas de seu tempo. Sua relação com aquele a quem chamava de Pai o fazia
compreender que os ensinamentos de Deus não se mostravam na rigidez das leis,
mas na graciosidade das narrativas e poesias espalhadas ao longo de todo texto
do Antigo Testamento.
Tanto as narrativas do
Antigo Testamento como a relação de Jesus com seu Pai também narradas pelos
Evangelhos revela um Deus que permite, justamente, ser narrado e conhecido por
meio dessas mesmas narrativas construídas por um povo na maioria das vezes
iletrado, pobre e sofredor que se relacionava com o Deus de seus antepassados.
Reconhecer esse ponto
importantíssimo no texto bíblico não significa dizer que o estudo sistemático,
especulativo e filosófico a respeito de Deus deve ser deixado de lado e
abandonado por parte dos teólogos e teólogas da atualidade. Claro que não.
Contudo, reconhecer a categoria da narratividade nos ensinamentos do
cristianismo é tarefa fundamental para uma teologia que quer se dizer hoje e
fazer sentido para as pessoas de nossa sociedade.
Como povo brasileiro e
latino-americano fomos colonizados nas diversas estruturas de nossa forma de
viver. A forma de fazer teologia e de conhecer as coisas, consequentemente, não
estão fora dessa perspectiva. Uma prova disso é justamente a maneira como
consideramos correto falar a respeito de Deus com termos na maioria das vezes
eurocêntricos, fora da realidade do próprio povo, de maneira que a teologia se
torna uma linguagem distante e desconexa das vivências de fé que as diversas
populações do nosso país experimentam em seu dia a dia.
Se a teologia cristã é
um discurso a respeito do discurso que é feito de Deus a partir de determinada
realidade histórica, cultural, política e econômica, por que ainda insistimos
em fazer teologia latino-americana longe das vivências, experiências e
narrativas latino-americanas, concentrando nossos esforços somente em teologias
importadas do norte global?
Responder a essa questão é tarefa urgente para a teologia brasileira do século 21 e ter coragem para fazer teologia a partir das vivências e experiências de fé de nosso povo e suas diversas vertentes (em outras palavras, uma teologia narrativa) é crucial para que possamos, realmente, avançar ainda mais em uma teologia de matriz descolonial em nosso país.
*Fabrício Veliq é protestante e
teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE),
Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em
Filosofia e Licenciado em Matemática (UFMG) E-mail: fveliq@gmail.com. Site:
www.fabricioveliq.com.br
Fonte:domtotal.com
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