sexta-feira, 31 de julho de 2020
SOMOS AS MÃOS DE DEUS
“Os discípulos
distribuíram os pães às multidões” (Mt 14,19)
Poderíamos
dizer que o relato do Evangelho deste domingo é uma parábola em ação.
A
cena acontece em um “lugar despovoado”, afastado da vida cotidiana organizada
segundo o pensamento da sinagoga e a lógica dominadora do império. Sair do
centro, ou ser deslocado do centro, pode ser uma vantagem à hora de perceber o
que Deus realiza em nossas situações concretas.
Quando
Jesus e seus discípulos vão pelo mar, a multidão sai caminhando ansiosamente
por terra e os alcança. Jesus é ponto de confluência de todas aquelas fomes,
dispersões e diferenças. É o povo pobre das pequenas aldeias que está sofrendo
grandes injustiças e muita pobreza.
De
alguma maneira, este “fora” evoca a saída do povo judeu do Egito ao deserto,
onde se encontrou com Deus numa experiência que o fará passar de multidão
dispersa de escravos a um povo unido e livre.
O
povo tomou distância com relação ao seu mundo rotineiro e agora se encontra com
Jesus, que encarna a novidade de Deus ao alcance da mão. Também pode ser o
“fora” de todos os excluídos da história que se encontram com Jesus, tornando
realidade o sonho do Reino: o mundo da igualdade e da comunhão.
Jesus,
nos diz o relato, primeiro sente compaixão das multidões, e depois convida
a partilhar.
Em
contraste com atitude compassiva do Mestre, os discípulos, percebendo a hora
avançada, pedem que as multidões sejam despedidas para que comprem pão e se
alimentem. Esta é a lógica desumanizadora: devolver as pessoas às suas próprias
possibilidades limitadas, à escassez e à privação que a sociedade as relegou.
Os discípulos são sensíveis à fome do povo empobrecido, mas o deixam à mercê de
seus próprios recursos. Não conhecem outra solução.
Jesus
abre outra lógica: a da partilha, frente à lógica do mercado, da
apropriação e da acumulação.
Os
produtos da terra estão situados na lógica do amor, que é a única força
transformadora da história. Esta é a utopia do Reino: um povo reunido
harmoniosamente pela mesma busca faminta e pela mesma saciedade, onde os
alimentos da terra, produzidos com esforço, são compartilhados com todos, sem
que ninguém negocie ou acumule.
Tudo
aparece reconciliado: o cosmos, com a natureza verde e em paz; os produtos do
trabalho humano, da generosidade do mar e da terra; e as pessoas, em uma
relação entre elas mesmas e com Deus sem exclusões, competições nem
privilégios. Isto é possível porque todos se deixaram afetar pelo dom do mesmo
Reino que cresce já no coração de todos.
Só
será efetiva a nova comunidade quando pães e peixes entrarem na lógica do
Reino. Sem oferecer o próprio pão, os próprios recursos, a própria pessoa, não
há possibilidade de construção do Reino de Deus.
Jesus
não pediu a Deus que solucionasse o problema da fome, e sim, mobilizou os seus
discípulos para que encontrassem uma saída diante daquela penúria. E a saída
está na capacidade de partilha de todos.
Também
aqui é preciso “ouvidos” e “olhos” bem abertos para encontrar a chave de
compreensão da cena. Há um risco de permanecermos na superfície do relato,
assombrando-nos com o prodígio da “multiplicação dos pães”. Na realidade, não
foram os pães que “se multiplicaram”, mas a generosidade da partilha do
alimento.
O
certo é que, tudo o que as pessoas tinham, foi colocado à disposição de todos.
Esta atitude desencadeia o prodígio: a generosidade se contagia e realiza o
“milagre”. Quando se deixa de monopolizar os bens, eles chegam a todos. Quando
os bens imprescindíveis para a vida são monopolizados, provoca-se a miséria, a
fome, e a morte. Na intenção do evangelista, Jesus demonstra, deste modo, que o
problema não é a carência de recursos, mas a falta de solidariedade.
Realmente
foi um verdadeiro “milagre” que um grupo tão numeroso de pessoas
compartilhassem tudo o que tinham até conseguir que ninguém ficasse com fome.
Porque o texto não fala de “multiplicar” o alimento, mas de “dividi-lo”: quando
ele é partilhado, costuma sobrar. Que acontece com os pães e os peixes nas
mãos de Jesus? Não os “multiplica”. Primeiro, bendiz a Deus e lhe dá graças:
aqueles alimentos vem das mãos de Deus: são para todos.
A
dinâmica normal da vida nos diz que o “pão”, indispensável para a vida, deve
ser adquirido com dinheiro, porque alguém o monopoliza e não o deixa chegar ao
seu destino, a não ser cumprindo algumas condições que, aquele que monopolizou,
impõe: o “preço”.
O
que Jesus faz é livrar o pão desse monopólio injusto. O olhar voltado para o
céu e a benção são o reconhecimento de que Deus é o único dono do pão e que a
Ele é preciso agradecer este dom. Liberado do monopólio, o pão, imprescindível
para a vida, chega a todos sem ter que pagar um preço por ele. Em seguida,
Jesus, com suas mãos solidárias, vai partindo os dons e entregando-os aos
discípulos. Estes, por sua vez, prolongam as mãos de Jesus, e vão distribuindo
os pães e peixes à multidão; estes alimentos vão passando de mãos e mãos, de
uns aos outros. Assim, todos puderam saciar sua fome.
A
multidão dispersa, transformada pelo encontro com Jesus, já é capaz de
sentar-se em grupos ordenados sobre a relva, iguais, sem divisão em
hierarquias, que costuma criar fissuras na comunhão. Jesus pede que todos se
assentem sobre a relva para celebrar uma grande refeição. Rapidamente, tudo
muda. Aqueles que estavam a ponto de se separar para saciar sua fome em sua
própria aldeia, se assentam juntos em torno a Jesus, para partilhar o pouco que
tem.
Os
que tinham algo para comer também foram repartindo com os outros. Na realidade,
o verdadeiro milagre foi o da partilha, onde as pessoas famintas não se lançam vorazmente sobre
os pães numa luta para conseguir os alimentos escassos. Compartilhar
gratuitamente com os outros, com desconhecidos, e não acumular o que sobra, isso
sim é milagre.
Em
cada migalha de pão, em cada pedaço de peixe, há uma história de amores e
trabalhos que vão passando de mão em mão, sem cobiça devoradora. Os bens deste
mundo, carregando dentro uma vocação fraterna e universal, são dons para todos.
Nesta
refeição de todo o povo sobre o campo verde não se discrimina ninguém, não se
pergunta a ninguém pelo seu passado, sua profissão ou sua situação moral. Todos
são acolhidos como expressão das entranhas compassivas de Deus, que chama todos
a compartilhar na Sua Grande Mesa festiva. Todos se sentem pessoas dignas e
amadas. É a grande refeição da inclusão de todos.
Algo
inaudito está começando nesse povo com a chegada de Jesus. No Reino de Deus só
há uma Mesa, à qual todos são convidados, sem discriminação sem exclusão de
nenhum tipo. É assim que Jesus quer ver a nova comunidade humana.
Temos
nas mãos e no coração a opção de viver “em chave desumanizadora” (“despede as
multidões!”) ou
“em chave de benção” (“os discípulos distribuíram os pães às multidões”), descobrindo na vida, para além de sua fragilidade, a presença que fazia
Jesus estremecer-se de compaixão quando sentia a dura situação dos prediletos
do Pai.
Assim
quis Deus que nossas mãos fossem a presença e o sinal de Suas mãos criadoras, que acolhem e
cuidam da mãe Terra e da vida das pessoas. Somos as mãos de Deus, não só para
alimentar, mas para acariciar e curar, para cuidar do planeta terra, nossa
casa, para “multiplicar vida”...
Texto bíblico: Mt 14,13-21
Na oração: quais são as duras situações das pessoas do mundo atual
que fazem emergir novamente o apelo de Jesus: “Dai-lhes vós mesmos de comer”.
Deus
torna visível suas mãos através de nossas mãos abertas e que compartilham. Onde
você percebe que pode ser a mão bendita de Deus que atua em favor da vida?
Quando
ouvimos em nossas eucaristias o grito de Jesus: “Dai-lhes vós
mesmos de comer”?
Nós,
depois de anos seguindo a Jesus, o quê somos capazes de partilhar?
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário