UM CORAÇÃO SEM DISTÂNCIA: REFLEXÃO SOBRE O EVANGELHO DO 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM - MT 11,25-30
A
debilidade humana descansa nas mãos de Deus
(Unsplash/ Bonnie Kittle)
"...porque
sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós" (Mt
11,29)
Inútil discutir e dar
voltas: o distanciamento social veio e começou a fazer parte do nosso ritmo
cotidiano; não nos resta outro remédio a não ser tomar medidas para aprender a
manejá-lo e a incorporá-lo em nossa vida da maneira menos danosa possível.
De fato, seus perigos
são evidentes: o distanciamento físico ("que só se aproximem até um
metro"), pode gerar o distanciamento social ("que não me venham com
mais problemas, porque já tenho os meus") e desembocar no distanciamento
emocional ("olho ao meu redor e sinto as pessoas como uma ameaça").
O evangelho deste
domingo pode nos oferecer uma inspiração neste momento dramático que vivemos.
Jesus nos revela que
toda manifestação de distanciamento (sanitário, físico, social, religioso,
cultural, político...) pode ser quebrado a partir do coração. Toda proximidade
com o outro começa pelo coração. Nesse sentido, encontramos uma pérola de
grande valor naquilo que o evangelista Mateus nos desvela: "Aprendei de
mim, que sou manso e humilde de coração" .
Ao se apresentar como
referência para os seus discípulos ?" "aprendam de mim!"- ,
Jesus frisou duas atitudes pelas quais pautava a sua vida: a mansidão e a
humildade. Elas são o reflexo das bem-aventuranças que ele sempre deixou
transparecer no encontro com os outros.
É do coração que
brotam a mansidão e a humildade, únicos remédios que substituem a expressão do
afeto e a cordialidade manifestada por via táctil (dar as mãos, abraçar...).
Mesmo quando a situação impede que mãos e braços se encontrem, os corações se
abraçam.
Este "tempo de
confinamento" está nos fazendo tomar consciência de nossas debilidades,
quebrando toda pretensão de autossuficiência e de soberba; ao mesmo tempo, está
nos fazendo experimentar que não somos donos de nossos estados de ânimo e que
precisamos dedicar tempos ao descanso e à gratuidade.
Vivemos em meio à
cultura da produtividade, da competição, da eficiência, e isso nos deixa
cansados, raivosos, angustiados e tristes, sem um motivo aparente e sem poder
encontrar uma solução para isso. Constatamos que nossa fragilidade
carrega em si a necessidade de sair, de passar tempos distendidos, de
reaprender a estar com os outros, de oxigenar nossa vida em meio a tantos
venenos que nos asfixiam...
A humildade e a
mansidão do coração nos trazem para o chão da vida e nos possibilitam viver com
mais humanidade. E estas duas virtudes estão disponíveis, em abundância, no
nosso interior. Basta abrir espaços para elas e o nosso cotidiano adquirirá
novo sabor e calor.
É suave a condição
humana quando, em vez de ocultar nossa debilidade, descobrimos com assombro que
é ela que nos conduz pela mão a nos aproximar calorosamente dos demais. Quando
vivemos a debilidade de forma agradecida, é mais fácil perdoar que condenar,
compreender que murmurar, aceitar que julgar.
A debilidade humana
descansa nas mãos de Deus. Talvez seja esta a aprendizagem principal de nossa
vida, pois a temos saboreado internamente. Só assim poderemos oferecer, também
nós, um lugar acessível de repouso para os cansaços e fragilidades dos outros.
"Descansar"
não é a outra face da ação de trabalhar; é participar, ter parte, na vida mesma
de Deus, onde ação e repouso coincidem numa única pulsação, num único movimento
de segurança e de felicidade, de consentimento e de abandono, nessa Presença
Humilde que flui dentro de nós, nos atrai e nos conduz com suavidade. O
decisivo é ir ao seu encontro e deixar-nos aliviar, para aprender dele a sermos
mais humanos.
Se vivemos só em chave
de mandamentos, de doutrinas, de normas..., comeremos pão de fadigas e
sentimentos de culpa; se vivemos em chave de bem-aventuranças, certamente
poderemos caminhar aliviados, porque o peso e a fecundidade da vida estão
apoiados em Outro e não dependem só de nós.
Nesse sentido, as
bem-aventuranças da humildade e a mansidão são o terreno sólido sobre o qual
podemos assentar nossa vida e ativar todas as potencialidades humanas que nos
habitam.
"Humildade"
vem de húmus, chão, barro. Ela está vinculada ao amor à verdade e a ele se
submete. Ser humilde é amar a verdade mais que a si mesmo.
"Humildade é andar na verdade" (S. Teresa).
"Onde está a
humildade, está também a caridade" (S. Agostinho). É que a humildade leva
ao amor, e todo amor verdadeiro a supõe; sem a humildade, o ego ocupa o espaço
disponível, e só vê o outro como objeto ou como inimigo. A humildade nos conduz
à pura gratuidade do amor desinteressado.
Por outro lado,
aqueles que vivem sob o impulso da mansidão, não rejeitam nada, não exigem
nada. Estão abertos às surpresas da vida, vão interiorizando as contrariedades
de cada dia e ampliando um espaço no próprio interior, onde acolher a realidade
e reafirmá-la; revelam um coração que cria e alimenta proximidades com todos,
porque pulsa no ritmo do coração do outro, fisicamente presente ou distante.
A mansidão se
assemelha a um sentimento de não-violência ativa, a "essa capacidade
passiva de recepção que se encontra no fundo da estrutura da pessoa"(Edith
Stein).
Mansidão não é debilidade,
mas força suavizada; ela não é a atitude medíocre daqueles que se sentem
anulados pela presença violenta do outro. É força que não provém da violência
externa, mas de uma transformação interna. Por isso, o manso pode realizar
ações impossíveis a quem é violento e sentir-se bem-aventurado e feliz, uma vez
que tem esperança de conquistar o coração dos outros e se encontra entre os que
herdarão a "terra prometida" do coração de Deus.
A mansidão cristã,
reflexo daquela de Jesus, é plena de força. Suavidade e força que recorda o
modo "suave-forte" divino de agir. Trata-se daquela harmonia
conquistada pelo ser humano que alcançou seu centro mais profundo e ali
encontra o dom da liberdade. A mansidão é o estado interior a ser alcançado
pelos corações dos homens e mulheres livres.
Nessa ótica, de fato,
quando perdemos a mansidão, vemos nossa liberdade diminuída. Entramos na lógica
do revide e a emoção indomada preside nossas ações.
Vivemos em um mundo
onde imperam a prepotência, a agressividade, a vingança, o ataque e o desafio
preventivo, o amedrontamento, a extorsão e a imposição violenta como meios
habituais para conseguir os fins que se pretendem. Esta mesma estratégia de
morte é utilizada em diferentes ambientes, tanto civis como religiosos,
políticos como econômicos, entre pessoas e entre grupos ou nações.
Com isso, a vida e as
relações se convertem num campo de batalha contínua, como se fosse uma manada
de lobos disputando o cordeiro.
Como seguidores(as)
daquele que é o humilde artífice da paz, testemunhamos e profetizamos que a
mansidão é o verdadeiro rosto da Igreja.
Não é por acaso que
muitas pessoas que lutaram em favor da justiça, pagando com a própria vida,
tenham essa característica comum: a mansidão (Gandhi, Luther King, Dom
Romero...). São descritos como indivíduos mansos e humildes, amáveis e de agir
discreto, abertos ao diálogo e à acolhida do outro, pacientes e simples. E,
exatamente por isso, dotados de uma força diferente e, sobretudo, muito eficaz.
Bem-aventurados os
humildes e os mansos! Graças a eles o mal, na terra, pode se transformar em
bem!.
Texto bíblico:
Mt 11,25-30
Na oração: De onde
brotam a mansidão e a humildade? Como ativá-las e fazê-las crescer? Ninguém
pode improvisá-las. A raiz última da mansidão-humildade é contemplativa. Nasce
em um clima de oração, numa proximidade íntima que faz o nosso coração pulsar
no mesmo movimento do Coração compassivo de Deus. Desse encontro, de coração a
Coração, emergem das profundezas de nosso ser estes dinamismos mais humanos e
mais divinos. A partir da fonte original, a mansidão e a humildade vão se
expandindo na direção dos outros, alimentando novas relações, acolhendo o
diferente, vibrando com o bem presente no outro...
No ritmo de sua vida,
o que mais se faz visível: mansidão e humildade? Ego inflado e soberba?
Agradecimento assombrado ou ingratidão venenosa? Suavidade divina ou
prepotência que petrifica?...
*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e
atua no ministério dos Exercícios Espirituais
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