terça-feira, 4 de agosto de 2020
A SALVAÇÃO
A Igreja evangélica
conquistou Maria por imprimir-lhe identidade social e acolhê-la em uma
comunidade solidária na megalópole sem rosto (Igor Rodrigues / Unsplash)
Se
a Igreja Católica não passar por reformas profundas, como erradicar o
clericalismo e tornar efetiva a opção pelos pobres, perderá cada vez mais
fiéis. Incluo-me entre os que sonham com uma Igreja que não tenha sacerdotes
entre os indígenas, os quilombolas, os moradores de favelas e as mulheres, e
sim indígenas sacerdotes, quilombolas sacerdotes, moradores de favelas
sacerdotes e mulheres sacerdotes.
Por Frei Betto
Maria X. veio da zona
rural de Minas à procura de trabalho em São Paulo. Acolhida por família
conterrânea na favela do Jaguaré, Maria perambulou uma semana pelo centro da
cidade, na esperança de se empregar no comércio. Devido à pouca escolaridade,
sem sequer ter concluído o ensino fundamental, se viu reprovada nos testes de
português e aritmética. O recurso foi trabalhar como faxineira em casas
particulares.
Maria não conhecia
ninguém na cidade grande, que lhe parecia hostil, exceto a família conterrânea
que, um mês depois, começou a dar sinais de que ela era demais no barraco que
abrigava o casal e seus três filhos.
Católica, Maria procurou
a igreja do bairro, distante da favela, para cumprir o preceito dominical.
Estranhou o ambiente. No templo, havia mais madames do que Marias. Todos
assistiam, silentes, ao desempenho do padre no altar, e ela não entendeu quase
nada do que ele pregou no sermão. Maria se perguntou se o Deus no qual
acreditava havia ficado na capela de Nossa Senhora do Rosário que ela frequentava
em Minas.
Uma tarde, na volta do
trabalho, tomou assento no ônibus ao lado de uma vizinha. A moça se interessou
pela história de Maria e, ouvida a desilusão com a metrópole, convidou-a a
frequentar a Igreja Evangélica. Maria ficou curiosa e, embora recordasse do que
a avó lhe dizia, que os protestantes eram inimigos do papa, aceitou o convite.
No domingo, Maria foi
recebida no culto como se todos ali a esperassem há tempos. Ao contrário da
missa, havia um coral que entoava animados hinos, acompanhado por um conjunto
musical. O pastor também morava na favela do Jaguaré e pregou o que Maria
entendeu. E entendeu melhor porque, projetado o vídeo no telão, Maria teve
ideia de onde ficam a Judeia, a Samaria e a Galileia, lugares por onde Jesus
andou.
Ao final do culto, um
café, com variedade de bolos e biscoitos, foi servido aos fieis, e muitos se
aproximaram de Maria como se a conhecessem há tempos, a ponto de tratá-la por
"irmã".
Maria se sentiu
acolhida. Não se importou de o templo não ter imagens de santos e notou que
todos falavam em orar, jamais rezar. Maria sentiu que, ali, Deus estava mais
próximo dela. Pela primeira vez, deixara de ser uma anônima na cidade grande.
Maria passou a
frequentar a escola dominical após o culto. Ali, pela primeira vez, aprendeu o
que é a Bíblia, e por que contém a palavra de Deus. A comunidade não ofereceu a
ela apenas iniciação catequética própria a adultos. Interessou-se também por
suas condições de vida e seu trabalho, e inclusive lhe ofertou um novo
domicílio, uma cesta básica mensal, roupas em bom estado e os remédios que
precisasse.
A Igreja evangélica
conquistou Maria por imprimir-lhe identidade social e acolhê-la em uma
comunidade solidária na megalópole sem rosto. E ensinou a dispensar a
intermediação de padres e santos para entrar em contato direto com Deus através
da oração de súplica e louvor.
Maria acredita que o
pastor deseja sinceramente o bem dela e da congregação de fiéis. Por isso, não
duvida de que ele busca também o melhor para a população da cidade, do estado e
do país. Razão pela qual ela não reluta em dar seu voto aos candidatos que ele
indica.
Lembrei-me da história
de Maria ao receber a notícia de que o papa Francisco vetou a possibilidade de
indígenas casados atuarem como sacerdotes na Amazônia. A Igreja Católica está
fadada a perder terreno enquanto não fizer inserção inculturada.
Dados do IBGE, de
dezembro de 2019, e do demógrafo José Eustáquio Alves, indicam que, hoje, os
católicos são 50% da população brasileira. Em 2022 serão menos e, em 2032, 38,6%,
enquanto os evangélicos agregarão 39,8% da população, alcançando a maioria
absoluta em 2050.
Se a Igreja Católica não
passar por reformas profundas, como erradicar o clericalismo e tornar efetiva a
opção pelos pobres, perderá cada vez mais fiéis. E não me incluo entre os que
torcem pela competição entre católicos e evangélicos. Incluo-me entre os que
sonham com uma Igreja que não tenha sacerdotes entre os indígenas, os
quilombolas, os moradores de favelas e as mulheres, e sim indígenas sacerdotes,
quilombolas sacerdotes, moradores de favelas sacerdotes e mulheres sacerdotes.
Fora dessa enculturação,
a Igreja Católica não terá salvação.
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