quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A FUGA DO MUNDO COMO TARA DOS FUNDAMENTALISTAS

Algumas igrejas, na tentativa de não perder a juventude, adaptaram práticas seculares que abominam ao conteúdo cristão para que lhes fosse aceitável (Unsplash/ Nathan Mullet)

Misturar-se com o mundo é tarefa cristã
Uma das grandes taras do fundamentalismo evangélico é a fuga do mundo. É muito comum ouvir pastores pregarem esse afastamento de todas as maneiras. Ou seja, dizem que não se deve dançar, ouvir músicas, namorar pessoas etc. que não são evangélicas, isso dentre muitas outras bizarrices.

Embora possa parecer absurdo que muita gente tenha esse tipo de postura, não é difícil encontrá-la difundida em diversas igrejas. Trata-se de uma espécie de mantra que serve como elemento de segregação, principalmente entre adolescentes e jovens.

Como sempre, as justificativas dessas proibições tomam como base o texto bíblico. Não é de se espantar a escolha do livro sagrado para isso, já que, mal interpretada, a Bíblia é a mãe de todas as heresias. Textos como 2 Coríntios 6, que dize "não vos prendais com jugo desigual com os infiéis", comumente são usados para afirmar que uma pessoa evangélica não deve se relacionar com quem não é, porque isso seria uma união espiritual errada. Da mesma forma, o lindo ensinamento de Jesus que se encontra em Mateus 5, que afirma "sois a luz do mundo", é também usado para apregoar que o evangélico não pode se misturar com as coisas que são mundanas, tais como músicas, bares, boates etc. 

Numa tentativa de amenizar tais proibições, há algum tempo surgiu um tipo de movimento cool no meio evangélico. Igrejas com shows pirotécnicos, baladas ou bailes funk gospel etc., tentam trazer as "coisas condenáveis" para um ambiente "santo", convertendo os muitos ritmos em versões aceitáveis. Isso seria uma estratégia para a juventude não se desviar, mas, ao mesmo tempo, poder aproveitar os gêneros musicais do momento.

Contudo, as pregações e mensagens dessas igrejas continuaram dentro de um viés fundamentalista, incentivando a vida em uma bolha chamada reunião de jovens e adolescentes, nas quais as mesmas proibições e ameaças permanecem, só que agora numa versão remasterizada com o ritmo e a tônica que o jovem quiser. Em outras palavras, muda-se somente a forma, mas o conteúdo de alienação e fechamento ao mundo permanecem.

Esse tipo de postura mostra, no entanto, uma incompreensão da encarnação. Longe de ser um evento mágico acontecido em algum tempo distante, essa categoria tão cara ao cristianismo deve ser lida como metáfora para o envolvimento de Deus com o mundo e a importância que aquele dá a este. Se cremos, pela fé, que Deus assumiu a carne humana em sua radicalidade, então a diferença entre os mundos físico e espiritual não faz mais sentido, bem como entre santo e profano, uma vez que um entra no outro.

Dessa forma, essa separação fundamentalista entre santidade e mundanidade se mostra extremamente perniciosa por tentar fazer crer que servir a Deus é se afastar do mundo.

Compreender a encarnação é compreender que Deus nos quer no mundo, como sal, misturando-se com ele para fazer a diferença e mostrar que o seu amor e sua graça ainda chamam todos a ter vida em abundância. Afastar-se do mundo segundo as escrituras tem a ver com o distanciamento do sistema que promove e gera morte, desigualdade, discriminação e ódio ao diferente. Em outras palavras, não tem a ver com o tipo de música que se escuta ou o lugar no qual se vai, mas com viver uma vida que denuncia as injustiças e os sistemas opressores que fustigam os mais pobres.

De nada adianta não ouvir músicas seculares, mas discriminar o próximo ou somente se relacionar com gente cristã e, entretanto, apoiar políticas de morte contra os fragilizados. Toda teologia é política. Afastar-se do mundo como querem tais fundamentalistas nada mais é do que aceitar o status quo que oprime o pobre e retira dele seus direitos.

O cristão é chamado a se misturar com o mundo e lutar por sua transformação. Tal como Jesus em seu tempo, deve assumir a carne do mundo, ouvir seus clamores, compartilhar de suas alegrias, reconhecendo traços do divino no que é belo e, nos humildes, o rosto de Deus.

Domtotal
*Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em Filosofia e Licenciado em Matemática (UFMG) E-mail: fveliq@gmail.com. Site: www.fabricioveliq.com.br.

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